domingo, 23 de março de 2014

A DOR E A GLÓRIA DA CIDADE


Uma teologia de cidade a partir
do paradigma de Babilônia em Ap.17,18

No ano 354-430, Agostinho escreveu sua conhecida obra: Civitas Dei-Civitas Mundi, discutindo as relações entre a teologia bíblica da cidade como estratégica para a Teologia da Cultura e o ministério da igreja no contexto urbano. Somente anos mais tarde, outra obra sobre o tema será escrita. Roland Allen, (1869-1947), missionário anglicano, estuda os métodos missionários, fazendo uma analise das igrejas nas 4 províncias. Allen demonstrou que a cidade tornou-se a esfera na qual o Evangelho expandiu-se e avançou.
Embora o pensamento de Allen não tenha sido unanimemente aceito nos seus dias, em 1912, ele publicou sua obra clássica, Missionary Methods: St. Paul’s or Ours? no qual afirma que o método usado pelo Apóstolo Paulo, pode ser aplicado em qualquer tempo da história. Allen afirma: “Os métodos utilizados pelo apóstolo Paulo, são bem sucedidos exatamente onde os nossos tem falhado”.  Para ele, o derramamento do Espírito provê o zelo missionário para que o Evangelho se expanda.
A estratégia de Paulo foi:
  1. Priorizar centros urbanos para alcançar as províncias;
  2. Estabelecer trabalhos nos centros da Administração Romana que representavam todo império;
  3. Criar igrejas nos centros de civilização grega, porque o grego era sua língua de comunicação do Evangelho;
  4. Buscar os centros de cultura judaica.
Na visão de Allen, estes centros eram "as estradas do mundo". Isto significava que em Paulo havia uma forte orientação urbana para evangelização do mundo, agindo de forma contrária às tendências das comunidades Qunram que eram separatistas/escapistas.
Esta mesma tendência ainda pode ser hoje encontrada na comunidade cristã, que projeta sobre a cidade algo de maligno, e que lança mão de argumentos do tipo "aguardamos uma cidade celestial", sempre usados para fortalecer a forte oposição teológica em relação às cidades.
Na Bíblia, a primeira cidade foi construída por Caim (Gn 4.17), que lhe chamou Enoque, uma forma de glorificação de sua família, isto pode nos dar a idéia de que o conceito da cidade surge como se a construção de uma pólis só pudesse sair da mente de um homem que foge da presença de Deus e do ressentimento dos homens, para refugiar-se atrás das muralhas. Talvez isto explique um pouco da resistência que trazemos em construir um pensar reflexivo e maduro sobre a cidade. “Caim construiu uma cidade. Ele substitui o Éden pela sua própria criação. Ao invés de seguir o alvo designado por Deus, ele escolhe seus próprios objetivos – Ele substitui a segurança de Deus pela sua própria[1].
Muitas outras cidades são citadas na Bíblia, nenhuma, porém, aparece tão carregada de simbolismo e descrita tão negativamente como Babilônia (Ap 17,18). “Babilonia simbolizava através das Escrituras a cidade completamente dominada por Satanás... Babilonia recebe a atenção final em Apocalipse 16 e 18, onde ela é apresentada como síntese do mal, uma cidade totalmente rendida ao mal e àquele que é mal”[2], e nenhuma é tão amada quanto Jerusalém (Sl 136.5-6)., A Bíblia está repleta de citações sobre a cidade, apesar de iniciar sua narrativa num jardim, ambiente rural, por isto é significativo considerar que o último capítulo da Bíblia nos aponta para uma cidade feita por Deus (Ap 21.2-4). Cidade torna-se assim, biblicamente pensando, numa figura de exclusão/inclusão, contraste e oportunidade. Seria casual que o último capítulo da história humana se encerre na descrição de uma cidade? Santo Agostinho afirmava que a visão da cidade de Deus, a Nova Jerusalém, ilumina retrospectivamente toda a história da humanidade. Não é sem razão que Cox faz uma relação importante entre urbanização e secularização[3].
Existe, portanto, uma oposição dramática entre estas duas grandes cidades. Babilônia atrai as mais ruidosas expressões de ódio e de horror (Is 12 e 21; Jr 50 e 51). Babilônia era a “flor dos reinos” (Is 13.19), “a cidade grande que se vestia de linho, púrpura e escarlate, a que se enfeitava com ouro, pedras preciosas e pérola” (Ap 18.16). Foi a primeira metrópole que foi conhecida internacionalmente, construída por Hamurabi que a fez capital de seu reino. Durante 1.400 anos foi o centro cultural e comercial da Ásia antiga. Quatro vezes foi vencida, destruída e arrasada. Primeiro pelos hititas, depois pelos assírios. A Babilônia dos tempos bíblicos foi reedificada por Nabucodonozor e no tempo dos profetas teria de 300 a 400 mil habitantes, a maior concentração humana conhecida até então. Tinha 53 templos e 1.300 altares e foi construída para glorificar um ídolo, Marduc, o deus da Babilônia, por isto é descrita pelo apóstolo João como a encarnação da prostituição, que na verdade era uma referência à idolatria.
José Comblin, teólogo católico, afirma que a torre de Babel, era na verdade uma referência à babilônia. “Não há dúvida de que a famosa torre de Babel, é E-temen-Aki, a pirâmide descoberta em meio às ruínas e que a cidade, da qual fala Gn 11, é esta Babilônia histórica”.[4] Para Comblin, o pecado primordial dos homens antes de sua dispersão pelo mundo não é senão o desejo e a obsessão de tentar dominar a humanidade inteira. Ele afirma que o autor não diz qual era o pecado de Babel, porque era uma coisa evidente, trata-se de sua atitude de orgulho, da manifestação de excessiva confiança em si mesmos, e também da vontade de dominar o gênero humano e pô-lo a serviço da afirmação orgulhosa de um poder. Há algo na cidade que faz do homem um ególatra e o insensibiliza com respeito a Deus (Jó 6.20; Pv 21.22; Is. 23 e Ez 26). A Bíblia denuncia justamente aquilo que as cidades mais se orgulham: sua força, riqueza, domínio, a idolatria, o orgulho e a opressão dos pobres.
Jerusalém, apesar de ser amada, é também julgada tão severamente como as cidades pagãs. “Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os seus mensageiros” (Mt 23.37). Para os profetas, ela era outra Sodoma, merecendo as mesmas acusações de outras cidades ímpias e cometendo os mesmos pecados das cidades pagãs. Jeremias foi uma vítima nas mãos de um sistema de opressão. Por que os profetas não se contentaram em corrigir os defeitos, ou fazer sugestões para melhorar a situação e reformar os abusos? Não teria isto sido mais “cristão”?
Diante de tantas evidências escriturísticas, encontramos a segunda razão pela qual Missão Urbana precisa assumir relevância na nossa reflexão teológica e pratica pastoral. Precisamos fazer Missão Urbana porque a Bíblia é um livro Urbano.
A cidade é um complexo sistema social. Vivemos nela, mas não a conhecemos de verdade. As relações sociais na cidade, em especial entre os diferentes extratos, são tensas. Então, compreender este sistema é uma tarefa difícil com resultados imprevisíveis. Além disto, as correntes migratórias das pequenas cidades e povos, para os grandes centros urbanos, seja para buscar melhores oportunidades de trabalho ou outras razões, trazem mais tensões na sociedade e produzem grupos que se opõem e se atraem. A relação exploração/explorador é visivelmente percebido na forma como favelas e ricos condomínios se tocam e retroalimentam. Dos luxuosos apartamentos é possível enxergar a relação de exclusão e abandono, como se o homem urbano tivesse que ser lembrado diariamente da tensão existente entre os diferentes pólos.  
Por outro lado, em muitos lugares, o poder do estado quase não tem autoridade. Esta problemática tem levado as grandes cidades a uma guerra civil silenciosa. Frente a esta realidade, a igreja tem a responsabilidade de participar dos problemas  e promover o bem-estar espiritual e material dos cidadãos nos grandes centros urbanos. O profeta Jeremias nos incentiva a cumprir esta tarefa quando diz: “Procura a paz da cidade à qual os fiz transportar, e roga por ela a Jeová; porque em sua paz tereis vossa paz“ (Jeremias 29.7). Portanto, promover a paz da cidade é parte essencial da missão da igreja.
A igreja de Jesus Cristo tem que estar atenta para perceber as tensões que estão latentes dentro da sociedade urbana, e tomar um curso de ação para cumprir com a missão de Deus. Se cada igreja cumpre com sua parte, de uma forma ou de outra, a paz da cidade pode ser promovida, e o caos e o abandono social e espiritual tão presentes nestas realidades pode ser extinguido.
Comblin, faz uma intrigante análise sobre a ausência de uma reflexão nos teólogos da história do cristianismo, levantando a seguinte questão: “o que há por detrás do silêncio teológico?” Para ele, o silêncio também fala muito e precisamos considerar esta missão. Cabe-nos indagar como a teologia pode permanecer indiferente diante desta forte realidade humana. “A ausência de uma pastoral firme frente à cidade, pode ser reflexo de ausência de pensamento… Podemos legitimamente nos perguntar se a anarquia atual da pastoral das grandes cidades não está unida a uma ausência da teologia da cidade, que se encontra implícita nas fontes da revelação e, entretanto, não teve a explicação necessária. A igreja da Europa Ocidental é rural em todas as suas estruturas fundamentais”... As paróquias urbanas não passam de paróquias rurais trasladadas à cidade[5]
Por muito tempo, a missão urbana, ou a discussão em torno da “verba” foi desconsiderada e esquecida nas grades curriculares dos seminários teológicos, mais recentemente, porém, por causa do enorme desafio, tem se tornado uma reflexão cada vez mais aprofundada.
Linthicum, escritor Reformado, afirma que a cidade é um campo de batalha por isto a chama de cidade de Deus e cidade de satanás[6].

A Dor e a Glória da Cidade em Apocalipse 17,18

Apesar da narrativa negativa deste texto escatológico, podemos implicitamente encontrar na descrição da grande Babilônia, elementos profundamente relevantes para a pastoral urbana, porque apesar de ser tão criticada, esta cidade exerce este poder de atração e fascínio sobre a humanidade, e de uma forma muito particular no pensamento bíblico, já que ela é citada, considerada de forma tão presente no Antigo e Novo Testamento. Babilônia é paradigma de uma cidade repleta de glória, mas marcada por tensões e angústias. Que exerce um grande poder sobre a humanidade, mas que por causa de sua ética tão cruel, é julgada de forma tão veemente neste e em outros textos bíblicos.
Cidades atraem repulsa, condenação e crítica. Por sua dinâmica tende a gerar anonimato,  despersonalização, isolamento, desemprego, prostituição, violência e espiritualidade doentia, mas as pessoas continuam se voltando para ele e o povo de Deus encontra-se também presente, participando de sua construção e sofrendo os efeitos de sua desconstrução.

O que podemos encontrar na cidade?
1.       O poder se concentra na cidade – o texto de apocalipse 17 descreve que, na grande meretriz, os reis da terra se prostituiam, e se embebedavam com o vinho de sua devassidão. (cap. 17.2)
A cidade atrai porque ela é o centro de convergência do poder. Em torno dos reis e das figuras políticas se constrói o poder. As pessoas, desde os tempos antigos, se aproximam da cidade, atraídas pelo poder que ela possui. A grande meretriz de apocalipse 17 é o ponto de encontro dos grandes da terra.
Ainda hoje temos a nossa realidade. O poder do Planalto Central concentra decisões, seduz e fascina as pessoas, e porque o poder se concentra nesta cidade as pessoas facilmente são embriagadas por esta sedução explicita. Não é sem razão que Brasília é hoje a cidade com a maior renda per capita do país. Poder atrai riqueza e bens de consumo.
Poder atrai ainda outros recursos e benefícios, concentra riquezas e luxo, por isto a nobreza e toda forma de glamour se voltam para ele, ainda que, na sua maioria, seja oposta a Deus e se opor ao propósito de Deus. Poder exerce grande atração ao coração humano.
Apesar desta realidade tão explícita de oposição ao Sagrado, cidades ainda continuam sendo atraentes, por isto as pessoas tendem a se concentram especialmente em torno das grandes cidades.
Janice Perlman, conhecida urbanista americana, contrariando o conceito de que a cidade é um péssimo lugar para se viver, escreveu interessante livro chamado O mito da marginalidade, no qual afirma que as pessoas vão para as cidades "porque esperam um futuro melhor. Quando uma pessoa descobre que existe um mundo novo e fascinante fora do seu povoado, quer experimentá-lo". [7] Mais adiante faz dá ainda uma informação mais curiosa ao afirmar: "As metrópoles reúnem as pessoas mais criativas e brilhantes de todos os setores, a vanguarda e a liderança de seus países. Isto torna as megacidades fascinantes. Com uma enorme mistura de classes, culturas e etnias. Elas são o ambiente propicio à criatividade"[8]. Afirma noutro artigo, que os homens não são atraídos à cidade porque elas são ruins, pelo contrário, por causa das oportunidades que ela dá. Por isto diz  que “as cidades são ótimas”.[9]
               
2.       Cidades são marcadas pela luxúria e devassidão - A descrição de apocalipse aponta nesta direção (Ap 17.2). A cidade viabiliza e promove a luxúria. Grandes centros urbanos são marcados pelos pontos de prostituição e pelas casas que promovem a decadência moral.
O anonimato favorece a promiscuidade. A estrutura da cidade é construída de forma que as pessoas se distanciem não apenas geográfica, mas também emocionalmente. Os grandes banquetes de luxúria, os clubes de orgias que proporcionam tal devassidão se amontoam nas grandes cidades.
Embora o termo “prostituição” no texto tenha uma conotação mais voltada para a infidelidade espiritual, não se pode desconsiderar que um dos grandes desafios da igreja na cidade está voltado para a questão da baixa qualidade moral de seus habitantes.
Quando se pensa em ministério urbano, a questão da exploração sexual e da venda do corpo torna-se um dos grandes desafios de uma igreja que quer ser espiritualmente relevante para a sociedade. A igreja dos grandes centros, muitas vezes, tem que conviver com pontos de prostituição que disputam seus espaços lado a lado. O profano e o sagrado se revezam numa dinâmica explicita entre o bem e o mal.
Recentemente preguei numa igreja que ficava numa praça de uma grande cidade, e logo após o culto, aquele lugar muda completamente seu cenário. A Igreja fecha suas portas e em seguida a praça se torna um ponto de travestis. Igreja e prostituição convivendo lado a lado, num acordo um tanto quanto silencioso entre as diferentes forças espirituais.
Toda igreja de grandes cidades se vêem diante dos enormes desafios em relação à prostituição, venda de corpos e baixo nível de qualidade moral da comunidade com a qual está convivendo. Cortiços e favelas tornam-se lugares onde a devassidão sexual encontra um enorme espaço para proliferação, já que espaços minúsculos, e ambientes pouco privativos estimulam a devassidão.

3.      Por causa da concentração do poder a cidade e os palácios são o ponto de convergência das decisões que afetam radicalmente a vida dos seus cidadãos.

Tratando-se de uma democracia, os projetos de lei que são votados, na sua maioria, são resultados de fortes lobbies e servem de interesse a grandes grupos empresariais, trazendo ainda maiores sacrifícios para as classes pobres. A classe burguesa dominante vota leis inescrupulosas para proteger cartéis e exercitam com crueldade seu poder, votando leis injustas e iníquas que afetam de forma direta classes menos favorecidas. A cidade torna-se o ponto onde os podres poderes são exercidos de forma autoritária e dominante.
Quando os regimes são ditatoriais, a cidade torna-se o ponto onde a vida vale muito pouco. Deus condena Nínive por ser uma cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo e que não solta o sua presa (Naum 3.1). Por ser a capital do império assírio, Nínive concentrava toda decisão sobre o futuro de suas províncias, gerando uma massa de cadáveres sem fim, onde as pessoas tropeçavam sobre os mortos (Nm 3.3).
Babilônia e as grandes cidades concentram diferentes formas de poder facilmente se tornam violentas porque os poderosos exercem sua inescrupulosa função de matar e destruir. Poucas forças são tão fortes na vida quanto o poder, que é facilmente corrompido. Poderes absolutos ou divinizados são duplamente malignos.
Babilônia atraia os poderes. Ela possui sete cabeças e dez chifres, símbolos de poder (Ap. 17.3), já que o texto afirma que “os dez chifres que viste são dez reis” (Ap. 17.12). Símbolo de poder e força.
“Os poderes políticos e terrenos estão profundamente mesclados com a filosofia da besta e do anticristo – (Ap 17.13,17) Por seguirem a besta e concentrarem todas as suas energias na promoção deste poder maligno, oferecem-lhe o poder e a autoridade (17:13) e doam-lhe o reino que possuem (Ap 17.17), são por sua natureza intrínseca, comprometidas com a besta e opostas ao Cordeiro. Por isto “pelejarão contra o Cordeiro” (Ap 17.14). Os Poderes políticos não são descritos em apocalipse como poderes “neutros”, mas estruturas sistêmicas que promovem a besta. Babilônia está muito associada com a besta, na realidade o texto descreve a cidade  como que ‘montada numa besta” (Ap 17.3). Isto é, sua estrutura está fundada na filosofia e no projeto da besta. Roma, com seus poderes constituídos, com os dez chifres, representa o movimento perseguidor da igreja de Cristo durante a história, personificada em sucessivos impérios mundiais”[10].

4.       Cidades concentram riqueza e luxo – A descrição que apocalipse faz da Babilônia, é de uma mulher “vestida de púrpura e de escarlate”, símbolos da abundância, prosperidade e riqueza (Ap. 17.4). O poder corrompe mais facilmente que o dinheiro, porque geralmente ele atrai riqueza. Mas esta riqueza por sua vez, torna-se objeto de juízo e condenação como no caso de Laodicéia, que se julgava rica, mas era pobre (Ap. 3.17).
O texto descreve a riqueza de Babilônia: “Mercadoria de prata, de pedras preciosas, de pérolas, de linho finíssimo, de púrpura, de seda, de escarlate; e de toda espécie de madeira odorífera, todo o gênero de objeto de Martim, toda qualidade de móvel de madeira preciosíssima, de bronze, de ferro e de mármore” (Ap. 18.12), no instante, estas mercadorias valiosas estão sob o julgamento de Deus. “ai, ai da grande cidade, que estava vestida de linho finíssimo, de púrpura, e de escarlate (...) porque, em uma só hora, ficou devastada tamanha riqueza” (Ap. 18.16-17).
A bíblia não vê a prosperidade como algo ruim em si mesma, mas neste caso, a riqueza de Babilônia é antagônica ao Reino de Deus, e toda esta opulência está sob julgamento e será devastada de forma abrupta.
Por outro lado, antagonicamente, a cidade ostenta pobreza, miséria e alienação. Um dos grandes desafios que temos pela frente é lidar com o fato de que os pobres tem se tornado cada vez mais pobre. O capitalismo tende a concentrar riqueza nas mãos de alguns, e a cidade torna-se o lugar onde os bolsões de pobreza se acumulam. Muito da violência da cidade é reativa: Violência dos violentados.
Keller[11] afirma que existem quatro tipos de alienação: Teológica, Psicológica, social e física. A mais dramática de todas é a teológica. O homem se separou de Deus. O homem tem medo da presença de Deus e se esconde. O homem também sofreu um ruptura no seu mundo psicológico. Onde havia unidade e harmonia, agora existe desintegração, tormento, angústia e culpa. O homem sente-se “nu”, e isto traz perda da identidade pessoal, depressão, ansiedade, suicídio; O homem também sofre um distanciamento de seus semelhantes. Aqui surge o problema social, a exploração, imoralidade, injustiça, ambição, racismo, imperialismo, crime, opressão. Em quarto lugar o homem aliena-se da própria criação. A natureza é explorada e oprimida pela ganância humana.
Tudo isto desafia o ministério de misericórdia da igreja na cidade. A restauração da raça humana se dá em Cristo, posto que no seu ministério de reconciliação restaurou todas as coisas em si mesmo, trazendo novamente a ordem natural das coisas. A Igreja é chamada por Deus para exercer sua diakonia na cidade, trazendo cura por meio de Cristo, proclamando a redenção de todas as áreas da vida.

5.       Cidades resistem à Deus – A cidade de Babilônia é paradigmática também, no sentido em que ela é oposta aos servos de Deus – Ela está “embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Deus” (Ap. 17.6. O povo de Deus enfrenta forte oposição na cidade, por exercer esta contracultura e condenar a arrogância e se opor a Deus.

Determinadas estruturas urbanas são frontalmente antagônicas ao testemunho do evangelho, é como se colocasse uma placa advertindo: “É proibido a entrada do povo de Deus”. Pérgamo é descrita desta forma. “Conheço o lugar em que habitas, onde está o trono de satanás” (Ap. 2.13). Aquela cidade se tornou uma referência explicita para o mal, e quando o povo de Deus de forma ousada resolve desrespeitar este “código espiritual”, ultrapassando as placas e sinais, o resultado é o martírio.
Antipas, a fiel testemunha de Jesus, foi morto nesta cidade que estava dominada por Satanás.  Antipas representa todos os que fielmente testemunham do evangelho. Ele é Anti (contrário) + Pas (todos). Antipas é o protótipo do povo fiel, e todos os que querem viver piedosamente em Cristo, sofrerão perseguição.
A cidade tem esta tendência de rejeitar o testemunho da verdade. Jesus expulsa o demônio do Gadareno, mas os gadarenos também o expulsam de lá (Mc. 5-17). Bastou mexer no chiqueiro daquele povo para rapidamente se tornar persona non grata, apesar dos benefícios que sua presença trazia a pessoas que viviam escravizadas pela ação do demônio.
Os discípulos também foram rechaçados em Éfeso, porque seu discurso ameaça o comércio inescrupuloso que foi criado em torno da falsa religião. “Não somente há o perigo de a nossa profissão cair em descrédito, como também o de o próprio templo da grande deusa Diana, ser estimada em nada” (At 19.27). O discurso apostólico põe em cheque as convicções da religião tradicional, e ameaça a exploração financeira que girava em torno de romarias e lugares considerados sagrados.
Em Filipos, o evangelho é também imediatamente rejeitado tão logo a estrutura financeira do local tenha sido ameaçada. “Vendo os seus senhores que se lhe deslizava a esperança do lucro, agarrando em Paulo e Silas, os arrastavam para a praça, à presença das autoridades” (At 16.19).
Tanto em Éfeso quanto em Fillipos, os apóstolos são objeto de controvérsia. O evangelho incomoda as estruturas da cidade e por isto se torna inconveniente. “Estes que tem transtornado o mundo chegaram também aqui” (At 17.6).
Babilônia possui uma estrutura preparada para servir à besta. Os poderes temporais “tem um só pensamento e oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem” (Ap 17.13), por isto “pelejarão contra o cordeiro” (Ap 17.14). Deus sofre de um grande problema habitacional já que as estruturas de cidade não são abertas para acolher a palavra da verdade.
A relação da besta com os poderes encontram-se amalgamados. Em Ap 17.16 vemos que os dez chifres, pactuados com a besta. Ellul chama a atenção para o fato de que Babilônia vem da palavra babilani: (a porta dos deuses), isto é, o lugar onde os “deuses que não são deuses”, os fictícios, os opostos, os sedutores, penetram no mundo humano e procuram perverter o homem, desviá-lo do Deus verdadeiro.[12] 

6.       Cidades abrigam estruturas malignas que se tornam habitações sistêmicas do mal. Babilônia é tratada como “mestre de feitiçaria”, lugar que por sua índole transforma-se em “morada de demônios, covil de toda espécie de espírito imundo” (Ap. 18.2).
Por esta razão ela se “embriaga com o sangue das testemunhas de Jesus” (Ap 17.6), e se banqueteia com suas feitiçarias “todas as nações da terra foram seduzidas pela sua feitiçaria”. (Ap 18.23). Era uma cidade mesclada com bruxarias e envolvimentos demoníacos. Não era uma cidade secularizada, antes com uma forte presença de elementos espirituais. Só que esta espiritualidade era esotérica, mágica, satânica, ao mesmo tempo que se opunha fortemente à verdade do evangelho e eliminava à força, todos os genuínos profetas e santos que proclamavam a verdade. (Ap 18.24)
Apocalipse descreve esta cidade, dominada por forças profundamente antagônicas a Deus. Potestades e principados exercem seu domínio sobre elas ai Satanás assume o controle de forma concreta. Babilônia é um local, que por sua identificação com demônios faz comércio de “almas humanas”, esta frase no grego “some Kai psyché antropos” refere-se à servidão física e mortal a que os demônios submetem seus habitantes. A cidade é descrita como que dominada por poderes espirituais e malignos. Não se trata apenas da presença do mal, mas domínio espiritual em que tal cidade se encontra.
Tem estes um só pensamento, e oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem” (Ap 17.13) Poderes temporais que recebem poderes do demônio, já que “recebem autoridade como reis” (Ap 13.12). Aqui temos uma reciprocidade do mal. Os poderes terrenos recebem autoridade maligna, e uma vez recebido tal poder, desejam promover as entidades espirituais que as sustentam.
Para lidar com estas estruturas do mal, a igreja precisa se capacitar espiritualmente, e precisa fazer leituras contextuais do problema especifico de cada cidade. O conceito de contextualização é frequentemente mal entendido e desemboca em armadilhas e perigos. Hesselgrave descreve contextualização como “a tentativa de comunicar a mensagem e vontade de Deus de uma forma fiel à revelação[13]”, isto é, integrar a mensagem do Evangelho com sua cultura local. Por isto a contextualização pressupõe que sua fonte é a revelação das Escrituras Sagradas aplicada no contexto da pessoa que ouve a mensagem do Evangelho.

Implicações práticas para o ministério urbano:

1.       Precisamos entender as estruturas sistêmicas do mal, se quisermos ser mais efetivos no nosso testemunho.
O desconhecimento destas forças espirituais e sua relação com os poderes temporais, nos leva, a trabalhar numa dimensão meramente horizontal. Sem precisamos satanizar e espiritualizar todos os processos históricos nos quais o homem tem plena responsabilidade, precisamos aprender a olhar com a ótica da teologia bíblica que percebe a história humana permeada por forças espirituais. Não podemos negar que a cosmovisão bíblica é permeada por intervenções sobrenaturais.
A consciência de que lidamos como realidades espirituais afeta profundamente nossa abordagem pastoral. Precisamos agir não apenas com elementos sociológicos de contextualização, inserção social e presença humanizadora, mas acima de tudo com nossas orações.
“0 verdadeiro ministério na cidade implica mais que pregar o Evangelho...”[14] Não há dimensão na cidade que a redenção de Cristo não atinja. Ela é capaz, como sal e luz, de penetrar cada segmento social e invadir todos os espaços segmentados de uma sociedade rica ou simples. Paulo afirma que o propósito de Deus para seu povo é que, "Pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais". (Ef 3.10).
Russel Shedd, comentando este versículo diz que através do ministério da igreja "não somente o mundo, mas as forças que estão acima do mundo, que são os principados e potestades nos lugares celestiais, possam, desvendados no ministério de Paulo, perceber as igrejas que estão surgindo. Novos convertidos sendo libertados daquela escravatura, da morte e da ira de Deus que está sobre todo mundo, aparecendo em toda parte como luzes nas trevas, tornam a nova criação de Deus uma realidade"[15]
2.       Isto nos torna mais resilientes diante de oposição – Resiliência refere-se à qualidade de metais que expostos a grandes pressões, são capazes de se dobrar sem quebrar.
Paulo e Silas enfrentam fortes oposições em Filipos, mas perseguição não os leva a ficarem amargurados com a vida ou com o sistema, mas os leva a glorificar a Deus por reconhecerem que o evangelho estava alcançando vidas como a de Lídia e da jovem adivinhadora que estava dominada por uma força maligna.
Missionários, pastores e membros de igrejas deveriam perceber assim sua cidade. Dominada por competitivas estruturas de poder, mas se verem de fato como embaixadores de Cristo naquele lugar.

3.       Precisamos olhar a cidade com compaixão. Por causa da dominação das trevas, tais cidades estão debaixo do juízo de Deus e serão condenadas por recusarem a presença de Deus.
Jesus chora sobre Jerusalém, ansiando que tal cidade deixasse sua rebeldia e recusa ao chamado de Deus para a sua história. Ele sabia que aquela atitude pagã desembocaria no juízo de Deus sobre ele, e por isto sua casa ficaria deserta (Lc. 13.34-35)
Jesus também increpa as cidades de Corazim, Betsaida e Cafarnaum pela recusa em se arrepender. Ele sabe que o fechamento daquelas cidades para o seu ministério se tornariam condenação no dia do juízo (Mt 11.22-24).
Olhar estas cidades e compará-las com nossas cidades no dia de hoje deveria gerar compaixão em nossos corações. Toda compaixão geração nos impulsiona ao compromisso da oração. “A igreja é chamada a assumir a sociedade urbana não por oportunismo religioso, mas por vocação (…) Seu papel consiste em criar o povo de Deus a partir do povo da cidade”. [16] Ray Bakke afirma que o nosso problema é que temos vivido na cidade com sociologia e ferramentas urbanas, mas com uma teologia rural. Precisamos de uma teologia tão grande quanto a própria cidade. Tão urbana quanto nossa sociologia e missiologia.

4.       Precisamos discernir a temporalidade do poder – Cidades serão julgadas. Nações serão julgadas. Ao falar do grande julgamento no dia do juízo, Jesus chama a atenção não sobre o julgamento de pessoas, mas de nações, ou estruturas políticas da história. “Quando vier o Filhos do Homem sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono de sua glória; e todas as nações serão reunidas na sua presença” (Mt. 25.31-32).
O juízo de Deus recai sobre a atitude das nações com os famintos, estrangeiros, o nu e os presos. Os poderes são transitórios e vão passar, mas o julgamento de Deus vai se dar. Ele virá julgar a terra, julgará o mundo com justiça e os povos consoantes a sua equidade. A besta é transitória “A besta era, e não é” -  Esta é uma expressão que aparece 3 vezes neste texto. 17.8 (2 x); 17.11. A grande, imbatível e segura Babilônia é transitória e passageira. “Não é mais”. Seus alicerces e seus fundamento ruiram. “era e não é”. Isto contrasta com a figura do Cordeiro, que “é, era e que há de vir”. (1.4) e que foi morto “desde a fundação da mundo” (13:8). O domínio da besta é transitório, circunstancial, é uma potência econômica e militar, mas seu brilho vai passar. Sua glória é temporal. A prostituta e seus seguidores empregam toda sua energia e se consomem por algo que é passageiro e ilusório.

5.       Precisamos ter olhos para perceber que a vitória final é do Cordeiro – (Ap 18.14)
Babilônia precisa ser julgada, mas dentro da Babilônia está um remanescente fiel, um povo eleito, a fé destas pessoas eleitas precisa ser despertada (Tt 1.1), com o testemunho de vida do povo de Deus, com a palavra e, se necessário, com o martírio.
A despeito de toda oposição e perseguição, os “eleitos e fiéis, que se acham com o cordeiro também vencerão” (Ap 18.14). A cidade pode estar com suas estruturas comprometidas com o mal. Mas existem muitos que vivem nesta cidade e serão salvos.
A besta “era e não é” (Ap 17.8,11), idéia que se repete no tempo reflete a transitoriedade do domínio dos poderes do mal. A vitória é do Cordeiro, porque é o Senhor dos Senhores e Rei dos reis, os poderes transitórios passam, mas aquele povo redimido nesta cidade ímpia será participante da vitória do Cordeiro. Babilônia “nunca jamais, será achada” (18.21), por causa de sua feitiçaria e porque nela se achou sangue de profetas, de ? e de todos que foram mortos sobre a terra, (18.23-24) mas o testemunho do evangelho traz alegria àqueles que são convidados para às bodas do cordeiro. (Ap. 19-7,9)

Conclusão:

A Bíblia relata que a primeira cidade a ser construída, nasce sob suspeita, já que foi edificada por Caim (Gn. 4.17). Muitas cidades rejeitaram os profetas, expulsaram Jesus de seu território e recusaram a presença dos apóstolos. Isto tudo pode gerar em nós uma resistência ao ministério urbano e ao chamado de Deus para sermos luz onde satanás ainda constitui seu trono.
É bom considerar novamente que se a bíblia nasce num jardim seu último cenário é de uma  cidade. Podemos até estender que nossa vocação é continuar no jardim, mas a história bíblica nos faz direcionar o olhar para a visão de uma cidade.
Naturalmente a cidade final é glorificada “vi também a cidade santa, a nova Jerusalém que descia do céu” (Ap. 21.2). Nesta caminhada não estamos mais no jardim, nem chegamos à nova Jerusalém, por enquanto estamos inseridos na cidade de luxúria, promiscuidade, poder e oposição a Deus. Babilônia já caiu, mas ainda não deixou de existir. Como povo de Deus, vivemos nesta história aguardando a manifestação de uma nova ordem social e política. Enquanto isto, somos convidados a continuar dando testemunho da verdade, derramando o sangue do testemunho, se necessário, mas entendendo de antemão, que a história não segue um curso cego, antes nos antecipa a vitória do Cordeiro.
Keller afirma: “Quando olhamos a Nova Jerusalém, descobrimos algo estranho. No meio da cidade está o rio de águas cristalinas, onde se encontra a árvore da vida, produzindo frutos e cujas folhas curam as nações e suas feridas resultantes da quebra do pacto divino. Esta cidade é o Jardim do Éden, refeito. Ela é o fundamento do propósito do Éden de Deus. A Bíblia começa num jardim e termina numa cidade; o propósito de Deus para a humanidade é urbano! Por que? Porque a cidade é invenção e projeto de Deus, não apenas um fenômeno sociológico e uma invenção da humanidade”[17].
A besta “era e não é”, (Ap 17.9,11), mas o Cordeiro de Deus “o alfa e ômega... Aquele que é, que era e que há de vir, o Todo Poderoso” (Ap. 1.8) subsiste. A vitória é do Cordeiro, e de todos quantos caminham ao seu lado.

Rev Samuel Vieira
Anápolis 07 Out 2010



[1] . Ellul, Jacques – The meaning of the city, Vancouver Canada, William B. Eerdmans Publishing co., 1993, pg 5
[2]  Linthicum- Robert – Cidade de Deus e cidade de Satanás, Belo Horizonte, Missão Editora, 1995, pg. 26
[3] Cox, HarveyThe secular city - Toronto, Ontário, The MacMillian Company, 1965, pg 47
[4]   Comblin, José – Teologia da Cidade. São Paulo, ed. Paulinas, 1991, pg. 31
[5]   Comblin, Jose –1991, pg. 14
6. Linthicum, Robert C., 1995.

[7] Janice Perlman, “As cidades são ótimas”. Artigo, revista veja, 27 julho 1994
[8] Idem, pg 7
[9] Idem, pg 8
[10] Samuel Vieira , Tudo Sob Controle, Goiânia, Ed. Logos, 2002, pg 166
[11] Keller, Tim J., - Ministries of Mercy, Philisburg, PA, P& R Publishing, 1997, 2a. edição.
[12] . Ellul, op cit.  215
[13] . David J. Hesselgrave and Edward Rommen, Contextualization: Meanings, Methods, and Models, Grand Rapids, Baker Book House, 1989, pg. 200.
[14] Linthicum, op cit. Pg. 29
[15] Shedd, Russel – tão grande salvação, Abu Editora, S. Paulo, 1978, pg. 48
[16] Idem. pg. 234
[17] Keller, Tim – A Biblical theology of the city – http://www.e-n.org.uk/p-1869-A-biblical-theology-of-the-city.htm 28/8/2007

domingo, 3 de novembro de 2013

Estratégias para Plantio e Revitalização de Igrejas - Ronaldo Lidório

Estratégias para Plantio e Revitalização de Igrejas - Ronaldo Lidório


Estratégias para Plantio e Revitalização de Igrejas
  
Nosso principal alvo neste seminário é a exploração da missiologia a partir da teologia bíblica com destaque nas estratégias que conduzem ao plantio de igrejas. Possuimos 3 objetivos:

·         Expor os fundamentos bíblicos quanto ao plantio de igrejas
·         Expor os elementos estratégicos essenciais no plantio de igrejas
·         Levar os participantes a refletirem sua dinâmica pessoal e ministerial no plantio de igrejas


Introdução

Tessalonicenses 1:5 – Os valores de comunicação do Evangelho

“... o nosso evangelho não chegou até vós tão somente em palavra, mas sobretudo em poder, no Espírito Santo e em plena convicção...”

  • Poder. Deus é a força empoderadora da missão.
  • Espírito Santo. Convence o homem que está perdido e precisa de salvação.
  • Plena convicção (pleroforia). Paulo estava certo da mensagem, do lugar, do tempo e da sua vocação.

Mateus 24: 14 - A necessidade de uma comunicação keygmática (inteligível e aplicável), e ao mesmo tempo martírica (autenticada com o testemunho pessoal).


1.       Contextualização

Missiologia e Teologia não devem ser tratadas como áreas separadas de estudo, mas sim como disciplinas complementares. A Teologia coopera com a Igreja ao fazê-la entender o sentido da Missão e a base para a contextualização do Evangelho. A Missiologia, por outro lado, dirige teólogos para o plano redentivo de Deus e os ajuda a ler as Escrituras sob o pressuposto de que há um propósito para a existência da Igreja no mundo.

Soren Kierkegaard, Willian James e Rudolf Bultmann promoveram o liberalismo teológico associado à contextualização: o universalismo e contextualização como forma de relativização de valores.

O contrapeso teológico e escriturístico veio em Lausanne, 1974.  Se cremos que Deus é o autor da Palavra, que o Evangelho “é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê” (Rm 1:16), e que “a justiça de Deus se revela no Evangelho” (v.17), entendemos a necessidade de comunicar esta Verdade, de maneira inteligível ao que ouve e teologicamente fiel às Escrituras. Entendemos também que o Evangelho promove mudanças, gera transformações no homem e na sociedade. É a Verdade de Deus que liberta todo aquele que crê.

O Evangelho: a necessidade de uma compreensão bíblica

Uma das maiores barreiras na evangelização é a nossa própria compreensão do Evangelho. Por diferentes motivos humanizamos o Evangelho nas últimas décadas em um processo reducionista e passamos a igualá-lo a nós mesmos. Quando se diz que o Evangelho está crescendo, ou está sofrendo oposição, o que de fato desejamos comunicar é que a “Igreja” está crescendo ou sofrendo oposição. Paulo, escrevendo aos Romanos no primeiro capítulo, porém, deixa bem claro algo que parece estar esquecido em nossos dias: nós não somos o Evangelho – o Evangelho é Jesus Cristo. Portanto, apresentar a Igreja não é evangelizar. Expor a ética cristã para a família não é evangelizar. Anunciar a própria denominação não é evangelizar. Evangelizar é apresentar Jesus Cristo, sua vida, morte e ressurreição, para salvação de todo aquele que crê.

Modelo bíblico de contextualização da mensagem

Observaremos três passagens bíblicas no livro de Atos (9, 13 e 17) nas quais Paulo proclama o Evangelho. Primeiramente a um grupo formado puramente por judeus. Em outra ocasião a judeus, mas com presença gentílica simpatizante ao judaísmo. Por fim para gentios totalmente dissociados do mundo judaico e de seus valores vetero-testamentários. Ficará evidente que Paulo jamais compromete a autenticidade da mensagem bíblica, porém a comunica com aplicabilidade sociocultural de forma que haja boa comunicação, utilizando os elementos necessários para tal.

Notem que aos Judeus Paulo lhes fala sobre o Deus da promessa, Aquele que lhes trouxe do Egito, pois estes conheciam o Deus da Escritura e se viam como os filhos da promessa. Eles entendiam que Deus se revelou a seus pais, que interagiu com seu povo ao longo da história, que lhes deixou as Escrituras.

Ao segundo grupo Paulo lhes fala sobre o Deus das promessas e da história de Israel mas, como havia entre eles gentios, lhes fala também do Messias que há de vir para a salvação de todo aquele que crê. Percebemos aqui neste texto que Paulo lhes apresenta o Evangelho com fortes evidências vetero-testamentárias, para os Judeus, além de um grave apelo moral e escatológico, para os gentios judaizantes.

Ao terceiro grupo, puramente gentílico, o Messias que há de vir não lhes transmitia nenhuma mensagem aplicável à sua história, pois era visto tão somente como o Messias Judeu. Eles não tinham as Escrituras que O revelavam nem as promessas e alianças. Eles não se enxergavam como filhos da promessa  e não se identificavam com Abrão e Moisés. Porém, eles se viam como os filhos da Criação. Possuíam tremenda atração pelas obras criadas e fascinação pela figura do Criador. Eram caçadores de respostas e estudiosos da religiosidade, qualquer religiosidade. Portanto, Paulo lhes pregou sobre o Deus da criação, aquele que era antes de qualquer outro, que detém o poder de fazer surgir, e mantém a humanidade e o cosmos. Ele lhes fala demoradamente sobre os atributos deste Deus que é único, soberano, próximo e perdoador. Finalmente lhes fala de Jesus como o centro do plano salvífico de Deus, apresentando-O como o Messias para toda a humanidade.

A abordagem inicial em cada grupo foi diferente, a partir de seu contexto de compreensão e vida. A exposição foi sempre bíblica, com elementos da Palavra. A finalização, invariavelmente, culminou em Jesus Cristo, sua morte e ressurreição.

Critérios bíblicos para a contextualização

Tippett enfatiza que quando um povo passa a ver Jesus como Senhor pessoal, e não um Cristo estrangeiro; quando eles agem de acordo com valores cristãos aplicados à própria cultura vivendo um Evangelho que faz sentido à sua cosmovisão; quando eles adoram ao Senhor de acordo com critérios que eles entendem, então teremos ali uma igreja entre eles.

Na tentativa de avaliar a compreensão (e transformação) do Evangelho em um contexto transcultural, ou mesmo socialmente distinto, há três principais questões que deveríamos tentar responder perante um cenário onde o mesmo já foi pregado:

a) Eles percebem o Evangelho como sendo uma mensagem relevante em seu próprio universo?
b) Eles entendem os princípios cristãos em relação à cosmovisão local?
c) Eles aplicam os valores do Evangelho como respostas para os seus conflitos diários de vida?

Contextualizar o Evangelho é traduzi-lo de tal forma que o senhorio de Cristo não será apenas um princípio abstrato ou mera doutrina importada, mas sim um fator determinante de vida em toda sua dimensão e critério básico em relação aos valores culturais que formam a substância com a qual experimentamos o existir humano.


2.       Uma breve retrospectiva histórica e metodológica

Em meados do século 19 Henry Venn e Rufus Anderson direcionaram a Igreja através de sua intencionalidade no plantio de igrejas, justificando que as mesmas deveriam, ao ser plantadas, ter três características básicas: serem auto-propagáveis, auto-governáveis e auto-sustentáveis. Era o desenvolvimento do conceito de plantio de igrejas autóctones.

Na segunda metade do século 19, o esforço missionário denominacional combinou o plantio de igrejas com o desenvolvimento social quando foi contruído um número expressivo de hospitais, escolas e orfanatos em todo o mundo.

Hibbert observa, assim, que no início dos anos 80 havia três principais tendências quanto à ênfase no plantio de igrejas. McGravan e Winter enfatizavam o evangelismo e crescimento de igrejas; John Stott e outros enfatizavam uma abordagem holística conhecida hoje como missão integral; Samuel Escobar eRené Padilha adotaram um foco mais direcionado na justiça social.

Encontramos hoje uma vasta proliferação de modelos de plantio e crescimento de igrejas tais de como de Garrison, Vineyard, Willow Creek, Ralph Neighbor, Charles Brok, Brian Woodford e muitos outros. Quase todos possuem três ênfases semelhantes: a) plantio de igrejas de forma
intencional e planejada; b) a rápida incorporação dos novos convertidos à vida diária da igreja; c) ênfase no treinamento de liderança local e comunidades auto-governáveis.

Observando os diversos segmentos de plantação de igrejas no mundo atual (e na força missionária brasileira), podemos perceber que o enraizamento dos problemas mais comuns:

a) A dificuldade de se distinguir igreja e templo, perdendo assim o valor do discipulado e gerando mais investimento na estrutura do que em pessoas.

b) A demora na introdução dos convertidos na vida diária da Igreja, diluindo assim o valor da comunhão e integração, além de gerar crentes imaturos e disfuncionais.

c) A despreocupação com os fundamentos teológicos e atração pelos mecanismos puramente pragmáticos.

d) A ausência de sensibilidade social e cultural, pregando um evangelho sem sentido para o contexto receptor. Uma mensagem alienada da realidade da vida.

e) A excessiva pressa no plantio de igrejas, gerando comunidades superficiais na Palavra e abrindo oportunidades reais para o sincretismo ou nominalismo.

f) O excessivo envolvimento com a estrutura da missão ou da igreja, desgastando pessoas, recursos e tempo, e minimizando o que deveria ser o maior e mais amplo investimento: a proclamação do Evangelho.


3.                O modelo Paulino de plantio de igrejas

Pensemos na estratégia de Paulo. Em Antioquia da Pisídia ele pregava na Sinagoga, aos judeus. Eles, impressionados, o convidou a regressar. (At. 13:13-48). Percebe-se que em Icônio o Evangelho não foi rapidamente aceito, mas Deus o usou manifestando Sua graça por meio de milagres e maravilhas (At. 14:1-4). Em Listra Paulo foi usado por Deus para a cura de um homem, e transformou este momento em uma oportunidade para pregar o Evangelho à uma grande multidão (At. 14: 8-18). Em Tessalônica Paulo pregava na Sinagoga durante os sábados e na praça durante a semana. Historicamente ele se postava na “petros”, um suporte de pedra à saída do mercado, para ali anunciar diariamente a palavra do Senhor. (At. 17: 1-14).

Portanto encontramos no ministério de um só homem, em uma mesma geração, diferentes abordagens e estratégias. Paulo fala a multidões, mas também visita de casa em casa. Ele prega aos judeus na sinagoga, mas também o faz fora da sinagoga. Utiliza praças e mercados, jamais deixando de proclamar às multidões. Ele também devota-se a indivíduos para discípula-los e treiná-los para a liderança local. Devemos, portanto, compreender que não há estratégias fixas para a proclamação do Evangelho. Apenas princípios fixos.

No modelo Paulino de plantio de igrejas podemos observar que as principais estratégias utilizadas foram:

  • Introduzir-se na sociedade local a partir de uma pessoa receptiva ou um grupo aberto a recebê-lo e ouvi-lo.
  • Identificar ali o melhor ambiente para a pregação do evangelho, seja público como uma praça ou privado como um lar.
  • Evangelizar de forma abundante e intencional, a partir da Criação ou da Promessa, sempre desembocando em Cristo, sua cruz e ressurreição.
  • Expor a Palavra, sobretudo a Palavra. Expor de tal forma que seja ela inteligível e aplicável para quem ouve.
  • Testemunhar do que Cristo fez em sua vida.
  • Incorporar rapidamente os novos convertidos à igreja, à comunhão dos santos, seja em uma casa ou um agrupamento maior.
  • Identificar líderes em potencial e investir neles, seja face a face ou por cartas.
  • Não se distanciar demais das igrejas plantadas, visitando-as e se comunicando com as mesmas, investindo no ensino da Palavra.
  • Orar pelos irmãos, pelas igrejas plantadas e pelos gentios ainda sem Cristo, levando as igrejas também a orar.
  • Administrar as críticas e competitividade sem permitir que tais atos lhe retirem do foco evangelístico.
  • Utilizar a força leiga e local para o enraizamento e serviço da igreja.
  • Investir no ardor missionário e responsabilidade evangelística das igrejas plantadas.


4.                Plantio de Igrejas -  Elementos Essenciais

Os valores que devem fundamentar um processo amplo de plantio de igrejas são diversos, mas mencionaremos os principais:

  • Oração.   Há clara ligação entre despertamento para oração e plantio de igrejas;  entre avivamentos históricos e avanços missionários. Patrick Johnstone: “Quando o homem trabalha, o homem trabalha. Quando o homem ora, Deus trabalha”.

  • Abundante evangelização. Nenhuma tecnologia missionária substitui o poder da comunicação pessoal do Evangelho. O Evangelho foi abundantemente comunicado em cada período de expansão e plantio de igrejas de forma pessoal, fiel e constante.

  • Intencionalidade e objetidade. A ausência de uma intenção clara e objetiva de plantar igrejas é, em si, talvez a maior barreira para que isto venha a acontecer. Hesselgrave afirma que 75% das igrejas plantadas em lugares onde não há igrejas nasceram a partir de ações intencionais.

  • Fidelidade à Palavra.  Há muitas estratégias de movimento de massa que são funcionais, entretanto não são bíblicas. David Hesselgrave alerta-nos dizendo que  “nem todo novo pensamento é dirigido pelo Espírito. Nem tudo o que é novo é necessariamente bom. A Bíblia é antiga, o Evangelho é antigo e a Grande Comissão é antiga...”.  

  • Liderança local. Todo amplo movimento de plantio de igrejas que tornou-se regionalmente duradouro contou com um forte envolvimento de pessoas locais desde a primeira fase. O investimento em pessoas locais, passando-lhes a visão, paixão e estratégias garantirá um processo de plantio de igrejas que vá além do missionário ou evangelista.

  • DNA multiplicador. A reprodução de igrejas plantadas em uma segunda fase deve ser feita por meio dos frutos e não da raiz do movimento. Nesta etapa o(s) missionário(s) devem estar já assumindo uma posição de supervisão da visão e encorajamento, e não de linha de frente. Igrejas devem plantar igrejas. O modelo missionário que sugiro é: Inicie, pregue, discipule, reproduza, assista, encoraja e parta.


5.                Plantio de igrejas – Principais Barreiras na dinâmica ministerial

Os principais inimigos da evangelização e plantio de igreja em contexto intercultural são:

·         Falta de foco: múltiplas, pequenas e secundárias atividades que consomem todo o tempo e drenam toda a energia.
·         Falta de disciplina: A necessidade da organização e disciplina para um bom uso do tempo.
·         Falta de estratégias: a limitação de um trabalho puramente intuitivo. A abundância e  persistência como elementos centrais na evangelização e plantio de igrejas.
·         Falta de conciliação com as coisas da vida: a necessidade de conciliação das “coisas da vida” com o ministério missionário.
·         Falta de recursos financeiros: a grande demanda de recursos ao longo dos anos e a necessidade de planejamento, priorização e sacrifício.
·         Falta de motivaçãoEstar no local errado; permanecer tempo demais sem se mover para uma nova etapa; problemas relacionais dentro ou fora da equipe; falta de sincronia motivacional no casal; Isolamento e saudosismo nos solteiros.
·         Falta de comunhão com Deus: A vida devocional como fundamento para a vida e o ministério.
·         Falta de encorajamento e pastoreio: A ausência de prestação de contas, bem como a ausência de pastoreio resultam em isolamento, paralização ou distorções.

Algumas soluções e boas iniciativas:

·         Vida com Deus: fonte geradora de motivação, paz e direção no ministério.
·         Cuidar do coração, do casamento e/ou  família. É necessário estar bem para trabalhar bem.
·         Ser proativo procurando ajudar mais do que espera ser ajudado.
·         Ser um simplificador dos problemas que lhe chegam.
·         Procurar ajudar sempre que detectar um problema crônico ou difícil.
·         Ter um foco claro, simples e viável em seu ministério.
·         Escolher suas lutas. Não são todas.
·         Investir na comunicação com irmãos e igrejas para boa cobertura de oração e também apoio ministerial.
·         Investir na comunicação na equipe para boa amizade, oração e apoio ministerial.
·         Corrigir os caminhos errados. É sempre possível recomeçar: novos alvos, novo relacionamento, nova motivação, nova disciplina, nova organização, novo coração.


TRABALHOS CITADOS

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