Missão Transcultural
e cultura
Disciplina: Missão
Transcultural
“O Evangelho é supracultural, pois define e
explica a cultura, não o contrário; cultural, por ter sido revelado à
humanidade em seu próprio contexto e história; intercultural, por juntar ao redor
de Jesus pessoas de todos os povos; multicultural, ao ser destinado a todos os
povos e línguas; transcultural, quando transmitido de uma cultura a outra; e
contracultural, pois sempre confronta o homem em sua própria cultura.”
Ronaldo Lidório. 19 de agosto de 2014
Fonte: https://www.facebook.com/RonaldoLidorio/photos/a.452159141472813/782039535151437/?type=1&theater
Toda
vez que pensamos teologicamente a cultura, precisamos partir da visão bíblica
sobre o tema.
Existem duas dimensões paradoxais na cultura:
A Beleza da Cultura
Isto
pode ser entendido com o fato de que o homem foi feito à imagem e semelhança de
Deus, então, na essência do ser humano vemos racionalidade, sociabilidade,
moralidade, criatividade e espiritualidade. Isto faz parte essencial da
antropologia judaico-cristã.
O
conceito da Total Depravação, doutrina
fundante das Escrituras Sagradas e que surge como o primeiro ponto da TULIP, os
cinco pontos centrais do Calvinismo, pode subliminarmente dar ideia de que toda
produção humana é maligna em si mesmo, entretanto entendemos, que mesmo o ser
humano caído, pode manifestar lampejos do Imago
Dei e assim revelar estes aspectos essenciais que revelam ter sido ele
criado por Deus, para sua glória, ainda que a imagem de Deus no homem pecador,
esteja obnubilada pelo pecado.
Talvez
seja neste sentido que o grande reformador Lutero, que era também um músico,
que ao ver como homens sem Deus, ainda podem produzir obras musicais tão
profundas e sensíveis, teria feito a seguinte afirmação: “Por que o diabo pode
ter todos os bons tons?
A
verdade é que veremos na arte, ainda que produzida por homens distanciados de
Deus, certa beleza, espanto, encantamento. Isto é percebido na literatura, na
música, culinária e em tantas outras expressões artísticas.
Tentando
desfazer a falsa ideia de que o homem é totalmente
depravado, R. C. Sproul sugeriu outra conceituação: Corrupção Radical. Para ele o homem não é totalmente depravado, a
não ser naquilo que tangencia sua relação com Deus e sua incapacidade de se
voltar a Deus por ele mesmo como sugere o pensamento arminiano, mas o problema
do ser humano é que na sua raiz, na sua motivação, sem a obra do Espírito
Santo, tudo o que ele fizer será para auto glorificação, auto promoção,
narcisismo e para se tornar o centro. Sua corrupção surge na raiz de seu EU,
distanciado de Deus.
Por
esta razão, podemos afirmar que, apesar da queda da raça humana, todas as
culturas possuem certas expressões artísticas que são belas em muitos aspectos,
ainda que marcadas pela força do pecado.
A
perversão da cultura
Por
causa do afastamento de Deus, o homem perverte e contamina tudo aquilo que ele
toca. Francis Schaeffer nos seus livros “A
morte da razão”, e “O Deus que intervém”, faz questão de frisar este
aspecto, quando afirma que a queda afetou, não apenas a relação do homem com
Deus, mas todas as expressões artísticas. Desta forma, onde olharmos as
expressões artísticas, por mais belas que sejam, trazem a marca do pecado.
Um
exemplo na música brasileira pode ser citado para exemplificar esta situação.
Vinicius de Morais e Baden Powel, são dois excepcionais músicos e com
competência musical escreveram um texto musical que é uma das poesias mais
refinadas, e diz o seguinte:
O homem que diz dou
Não dá
Porque quem dá mesmo
Não diz
O homem que diz vou
Não vai
Porque quando foi
Já não quis
O homem que diz sou
Não é
Porque quem é mesmo é
Não sou
O homem que diz tou
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Não dá
Porque quem dá mesmo
Não diz
O homem que diz vou
Não vai
Porque quando foi
Já não quis
O homem que diz sou
Não é
Porque quem é mesmo é
Não sou
O homem que diz tou
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Veja
como a estrutura poética é refinada. A melodia da música não fica muito
distante. Entretanto, se você vai além vai perceber que a música é uma
glorificação de uma das entidades do candomblé, por isto o nome desta música é
assustadoramente nomeada como “O Canto de Ossanha”.
Desta
forma percebemos a mancha do pecado e da idolatria presente em tantas outras
dimensões artísticas.
A
cultura, portanto, se presta nas suas expressões artísticas, e na sua
cosmovisão, para promoção do homem e para distanciamento de Deus.
A
Bíblia demonstra como isto é verdade logo nas suas primeiras páginas. Em Gn
4.27, Caim edifica a primeira cidade da Bíblia: “Caim edificou uma cidade e lhe chamou
Enoque, o nome de seu filho”. A cidade, uma expressão artística com suas
primeiras manifestações artísticas da arquitetura, torna-se então, uma forma de
promoção da família e do nome de Caim e de seus descendentes.
O
mesmo veremos quanto a Babel: “Disseram:
Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos
céus e tornemos celebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda
a terra” (Gn 11.4). A cidade foi
construída para competir com a glória de Deus e para expressão do orgulho
humano. Assim tem sido desde a criação.
Os fundamentos da cultura
É
possível afirmar que a cultura se molda sobre dois aspectos:
Primeiro,
o controle da natureza – Isto vai se manifestar na forma como o homem usa as
ferramentas, constrói casas, estrutura aldeias e cidades, constrói palácios,
manipula e interage com a natureza.
Segundo,
no desenvolvimento das formas de organização social. Como ele fundamenta seus
padrões sociais que podem ser divididos em quatro áreas:
ü
Criação de instituições – que expressam as
crenças, valores e costumes. Estruturação das leis, governo, tribunais,
famílias, costumes
ü
Crenças – como as pessoas concebem o pensamento
mágico e sagrado: Deus, realidade, significados, mitos, ritos, simbologia.
ü
Valores – O que se torna verdadeiro, normativo,
regras, conceitos estéticos, etc
ü
Costumes – comportamento, relacionamentos,
trabalho e alimentação.
Pode-se afirmar que cultura pode ser
definida como “padrões seguidos por determinados grupos e seus sistemas
integrados de instituições, crenças, valores e costumes.
Toda
cultura implica em certa homogeneidade. Uma cultura possui um conjunto de
padrões aceitos e normativos, sejam eles escritos ou não; sejam eles
abertamente declarados ou subentendidos.
Apesar
desta homogeneidade, dois contrapontos surgem no estabelecimento de uma
determinada cultura:
§
Subcultura
§
Contracultura
Uma
subcultura, é uma expressão cultural que se manifesta, com variações
completamente distintas ou parcialmente diferenciadas. Normalmente estes grupos
formam minorias, pela sua forma de pensar e nem sempre são aceitos no grupo
social.
A
contracultura é a oposição à cultura vigente. Ela se torna agressiva e se opõe
ao status quo, questionando toda a cosmovisão e lutando contra valores
estabelecidos por uma cultura até mesmo secular. A contracultura foge da forma
comum da leitura, e torna-se subversiva na sua essência. Em geral ela forma os
vilões e os heróis, pois pode trazer reformas duradouras, ou conflitos
permanentes.
Uma
cultura une, ou divide, gerações. Ela une porque se comunica através de ritos
de iniciação ou, em povos anímicos ou tribais, na transmissão oral, ou mitos.
Quando esta cultura é colocada em cheque, transforma-se num ponto de luta e
dissensão, trazendo separação, luta pelo poder, rupturas e até mesmo morte. O
novo é sempre ameaçador.
Julgando a cultura
Em
geral, temos muito dificuldade de julgar a própria cultura, porque o
conhecimento cultural de uma sociedade não se estrutura nem se apreende através
de ensino, nem é pedagógico e filosófico como pensamos, mas é bem mais visceral
do que se pode conceber.
Silas
de Lima, missionário transcultural da Missão Novas tribos do Brasil e da APMT,
é tradutor para o idioma Oiampi do Amapá e chama a atenção dos leitores no
texto contextualização entre os indígenas[1].
Para ele, um dos grandes problemas que enfrentamos ao tentar contextualizar
a mensagem aos povos indígenas é que acreditamos que eles concordarão com
determinadas verdades, quando transmitimos conceitos abstratos de teologia
sistemática (sincrônica), quando na verdade, eles apreendem melhor quando a
verdade do evangelho é comunicada em outro nível, mais experimental e
vivencial.
Então,
ao lidarmos com culturas diferentes, enfrentamos dois problemas: primeiro, não
conseguimos ver as falhas da nossa própria cultura, porque julgamos que estamos
certos na forma de perceber e interagir com os desafios da vida; segundo,
porque tendemos a nos assustar, e até mesmo escandalizar, quando procedimentos
incomuns da cultura são adotados.
Não
é fácil ver a nossa cultura de fora, mas é fácil julgar costumes de outros
povos. Desta forma, encontramos dificuldade em comunicar de forma eficiente o
evangelho a povos de cultura diferente, porque levamos a mensagem com seus
pressupostos.
Como a cultura se expressa?
Uma
cultura se expressa e se estrutura através de vários elementos:
·
Provérbios: muito do nível cultura mais profundo
de um povo pode ser entendido através dos ditos que foram construídos e tem
sido repassados entre as conversas e gerações.
·
Mitos: Povos criam símbolos, magias e mitos. Há
assuntos que são tabus, e revelam muito da cosmovisão e religiosidade de um
povo. Mitos, não são, na sua essência, histórias reais, embora sejam narradas
como verdadeiras, mas são formas de se transmitir conteúdos subjacentes da
cultura e seus símbolos.
·
Contos populares: Estes contos servem para
estruturar o pensamento e comportamentos. Eles trazem lições éticas,
julgamentos e apontam para a forma de julgar e pensar.
·
Arte: seguramente a arte é a forma mais profunda
de arraigar a cosmovisão de um povo, e também para realizar mudanças duradouras
e revolucionárias. A música, por exemplo, tem o poder de fixar valores e
crenças com muita eficiência na compreensão de mundo que se constrói.
A
cultura tem ainda o poder de governar as ações comunitárias como o sistema
judiciário, que vai tentar regular e moldar atitudes dos cidadãos; bem estar
geral, onde se respeita os princípios da coletividade e da individualidade e as
atividades sociais, como danças, jogos e lazer. Que refletem também o estilo de
vida de uma determinada raça. Alguns povos primam por esportes agressivos, que
é uma maneira de demonstrar força, coragem, intrepidez, e até mesmo
impressionar o sexo oposto.
Apesar
de toda solidez para se construir uma cultura especifica de um povo, levando
eventualmente séculos ou mesmo milênios para se estabelecer, um aspecto precisa
ser mencionado: culturas jamais são estáticas. Por esta razão surgem as
subculturas e as contraculturas, questionando e ameaçando a ordem e o status
quo, e eventualmente trazendo uma nova compreensão do construto cultural
anteriormente estabelecido.
A importância da cultura
Mesmo
sabendo que todas as culturas, trazem os fragmentos da queda, e que são falhas,
eventualmente desumanas e demoníacas, a cultura possui aspectos muito importantes
para a vida humana.
Primeiro, cultura constrói identidade –
traz um sentido de pertencimento. Quebrar as regras de uma cultura é ameaçador,
ou ser marginal nesta cultura pode ser extremamente ameaçador. Um personagem
bíblico, Jefté, era filho de uma prostituta, e por isto foi hostilizado e
banido da casa de seu pai. Ele não conseguia encontrar sua identidade, e isto o
tornou truculento e reativo.
Segundo, cultura traz segurança – Mesmo
com todas as incoerências de toda cultura, seja ela moderna ou primitiva, viver
num ambiente onde as pessoas emitem respostas esperadas, traz conforto. Por
isto, viver em outra cultura é tão complexo. As reações que esperamos, não
surgem e isto traz ressentimento, amargura, oposição e eventualmente grande
ira.
Terceiro, Cultura traz dignidade –
Entendendo que tal dignidade é concedida, a partir do momento em que o
comportamento desejado é emitido. Infelizmente esta dignidade pode ser
reconhecida pelo grupo e sociedade, não porque se coaduna com as verdades do
evangelho, mas porque é aceita socialmente. Uma cultura em queda, certamente
valorizará desvios éticos eventualmente censurados na bíblia como o adultério e
a fornicação.
Conclusão:
Bultmann
afirma que “todo intérprete da Bíblia se aproxima dela com pressuposições”.
Apesar de sua afirmação ser verdadeira em muitos sentidos, ela é também
perigosa porque nos transmite a ideia de que a interpretação da bíblia não
possui critérios e seu sentido depende do próprio intérprete ou exegeta. A
teologia liberal ou a hermenêutica psicológica da Bíblia traz graves distorções
e se torna o pano de fundo de grandes heresias.
O
objetivo da Bíblia não é se adequar a cultura de um povo. Por esta razão, na
sua essência ela é contracultural, pois coloca nossos costumes e éticas sob averiguação.
A cultura precisa ser subordinada à revelação, e não o contrário.
Por
esta razão, toda cultura precisa passar pelo crivo das Escrituras. A adequação
cultural, sem crítica ou avaliação bíblica desemboca no sincretismo. Por outro
lado, quando elementos da cultura do missionário e não os valores bíblicos se
tornam critérios de avaliação e julgamento da outra cultura, isto gera elitismo
e distanciamento. As duas distorções precisam ser confrontadas.
[1] Campos,
Silas – em “Perspectivas no movimento
Cristão mundial”, Sao Paulo, Ed. Vida Nova, 2009, pgs 408-417
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