Uma
teologia de cidade a partir
do
paradigma de Babilônia em Ap.17,18
No ano 354-430, Agostinho
escreveu sua conhecida obra: Civitas Dei-Civitas Mundi, discutindo
as relações entre a teologia bíblica da cidade como estratégica para a Teologia
da Cultura e o ministério da igreja no contexto urbano. Somente anos mais
tarde, outra obra sobre o tema será escrita. Roland Allen, (1869-1947), missionário anglicano, estuda os
métodos missionários, fazendo uma analise das igrejas nas 4 províncias. Allen
demonstrou que a cidade tornou-se a esfera na qual o Evangelho expandiu-se e
avançou.
Embora o pensamento de Allen
não tenha sido unanimemente aceito nos seus dias, em 1912, ele publicou sua
obra clássica, Missionary Methods: St.
Paul’s or Ours? no qual afirma que o método usado pelo Apóstolo Paulo, pode
ser aplicado em qualquer tempo da história. Allen afirma: “Os métodos
utilizados pelo apóstolo Paulo, são bem sucedidos exatamente onde os nossos tem
falhado”. Para ele, o derramamento do
Espírito provê o zelo missionário para que o Evangelho se expanda.
A estratégia de Paulo foi:
- Priorizar centros
urbanos para alcançar as províncias;
- Estabelecer
trabalhos nos centros da Administração Romana que representavam todo
império;
- Criar igrejas nos
centros de civilização grega, porque o grego era sua língua de comunicação
do Evangelho;
- Buscar os centros
de cultura judaica.
Na visão de Allen, estes
centros eram "as estradas do mundo". Isto significava que em
Paulo havia uma forte orientação urbana para evangelização do mundo, agindo de
forma contrária às tendências das comunidades Qunram que eram
separatistas/escapistas.
Esta mesma tendência ainda
pode ser hoje encontrada na comunidade cristã, que projeta sobre a cidade algo
de maligno, e que lança mão de argumentos do tipo "aguardamos uma
cidade celestial", sempre usados para fortalecer a forte oposição
teológica em relação às cidades.
Na Bíblia, a primeira cidade
foi construída por Caim (Gn 4.17), que lhe chamou Enoque, uma forma de
glorificação de sua família, isto pode nos dar a idéia de que o conceito da
cidade surge como se a construção de uma pólis só pudesse sair da mente de um
homem que foge da presença de Deus e do ressentimento dos homens, para
refugiar-se atrás das muralhas. Talvez isto explique um pouco da resistência
que trazemos em construir um pensar reflexivo e maduro sobre a cidade. “Caim
construiu uma cidade. Ele substitui o Éden pela sua própria criação. Ao invés
de seguir o alvo designado por Deus, ele escolhe seus próprios objetivos – Ele
substitui a segurança de Deus pela sua própria[1].
Muitas outras cidades são
citadas na Bíblia, nenhuma, porém, aparece tão carregada de simbolismo e
descrita tão negativamente como Babilônia (Ap 17,18). “Babilonia simbolizava
através das Escrituras a cidade completamente dominada por Satanás... Babilonia
recebe a atenção final em Apocalipse 16 e 18, onde ela é apresentada como
síntese do mal, uma cidade totalmente rendida ao mal e àquele que é mal”[2],
e nenhuma é tão amada quanto Jerusalém (Sl 136.5-6)., A Bíblia está repleta de
citações sobre a cidade, apesar de iniciar sua narrativa num jardim, ambiente
rural, por isto é significativo considerar que o último capítulo da Bíblia nos
aponta para uma cidade feita por Deus (Ap 21.2-4). Cidade torna-se assim,
biblicamente pensando, numa figura de exclusão/inclusão, contraste e oportunidade.
Seria casual que o último capítulo da história humana se encerre na descrição
de uma cidade? Santo Agostinho afirmava que a visão da cidade de Deus, a Nova
Jerusalém, ilumina retrospectivamente toda a história da humanidade. Não é sem
razão que Cox faz uma relação importante entre urbanização e secularização[3].
Existe, portanto, uma
oposição dramática entre estas duas grandes cidades. Babilônia atrai as mais
ruidosas expressões de ódio e de horror (Is 12 e 21; Jr 50 e 51). Babilônia era
a “flor dos reinos” (Is 13.19), “a cidade grande que se vestia de linho,
púrpura e escarlate, a que se enfeitava com ouro, pedras preciosas e pérola”
(Ap 18.16). Foi a primeira metrópole que foi conhecida internacionalmente, construída
por Hamurabi que a fez capital de seu reino. Durante 1.400 anos foi o centro
cultural e comercial da Ásia antiga. Quatro vezes foi vencida, destruída e
arrasada. Primeiro pelos hititas, depois pelos assírios. A Babilônia dos tempos
bíblicos foi reedificada por Nabucodonozor e no tempo dos profetas teria de 300 a 400 mil habitantes, a
maior concentração humana conhecida até então. Tinha 53 templos e 1.300 altares
e foi construída para glorificar um ídolo, Marduc, o deus da Babilônia, por
isto é descrita pelo apóstolo João como a encarnação da prostituição, que na
verdade era uma referência à idolatria.
José Comblin, teólogo
católico, afirma que a torre de Babel, era na verdade uma referência à
babilônia. “Não há dúvida de que a famosa torre de Babel, é E-temen-Aki, a pirâmide descoberta em
meio às ruínas e que a cidade, da qual fala Gn 11, é esta Babilônia histórica”.[4]
Para Comblin, o pecado primordial dos homens antes de sua dispersão pelo mundo
não é senão o desejo e a obsessão de tentar dominar a humanidade inteira. Ele
afirma que o autor não diz qual era o pecado de Babel, porque era uma coisa
evidente, trata-se de sua atitude de orgulho, da manifestação de excessiva
confiança em si mesmos, e também da vontade de dominar o gênero humano e pô-lo
a serviço da afirmação orgulhosa de um poder. Há algo na cidade que faz do
homem um ególatra e o insensibiliza com respeito a Deus (Jó 6.20; Pv 21.22; Is.
23 e Ez 26). A Bíblia denuncia justamente aquilo que as cidades mais se
orgulham: sua força, riqueza, domínio, a idolatria, o orgulho e a opressão dos
pobres.
Jerusalém, apesar de ser
amada, é também julgada tão severamente como as cidades pagãs. “Jerusalém, que
matas os profetas e apedrejas os seus mensageiros” (Mt 23.37). Para os
profetas, ela era outra Sodoma, merecendo as mesmas acusações de outras cidades
ímpias e cometendo os mesmos pecados das cidades pagãs. Jeremias foi uma vítima
nas mãos de um sistema de opressão. Por que os profetas não se contentaram em
corrigir os defeitos, ou fazer sugestões para melhorar a situação e reformar os
abusos? Não teria isto sido mais “cristão”?
Diante de tantas evidências
escriturísticas, encontramos a segunda razão pela qual Missão Urbana precisa
assumir relevância na nossa reflexão teológica e pratica pastoral. Precisamos
fazer Missão Urbana porque a Bíblia é um livro Urbano.
A cidade é um complexo
sistema social. Vivemos nela, mas não a conhecemos de verdade. As relações
sociais na cidade, em especial entre os diferentes extratos, são tensas. Então,
compreender este sistema é uma tarefa difícil com resultados imprevisíveis.
Além disto, as correntes migratórias das pequenas cidades e povos, para os
grandes centros urbanos, seja para buscar melhores oportunidades de trabalho ou
outras razões, trazem mais tensões na sociedade e produzem grupos que se opõem
e se atraem. A relação exploração/explorador é visivelmente percebido na forma
como favelas e ricos condomínios se tocam e retroalimentam. Dos luxuosos
apartamentos é possível enxergar a relação de exclusão e abandono, como se o
homem urbano tivesse que ser lembrado diariamente da tensão existente entre os
diferentes pólos.
Por outro lado, em muitos
lugares, o poder do estado quase não tem autoridade. Esta problemática tem
levado as grandes cidades a uma guerra civil silenciosa. Frente a esta
realidade, a igreja tem a responsabilidade de participar dos problemas e promover o bem-estar espiritual e material
dos cidadãos nos grandes centros urbanos. O profeta Jeremias nos incentiva a
cumprir esta tarefa quando diz: “Procura a paz da cidade à qual os fiz
transportar, e roga por ela a Jeová; porque em sua paz tereis vossa paz“
(Jeremias 29.7). Portanto, promover a paz da cidade é parte essencial da missão
da igreja.
A igreja de Jesus Cristo tem
que estar atenta para perceber as tensões que estão latentes dentro da
sociedade urbana, e tomar um curso de ação para cumprir com a missão de Deus.
Se cada igreja cumpre com sua parte, de uma forma ou de outra, a paz da cidade
pode ser promovida, e o caos e o abandono social e espiritual tão presentes
nestas realidades pode ser extinguido.
Comblin, faz uma intrigante análise sobre a
ausência de uma reflexão nos teólogos da história do cristianismo, levantando a
seguinte questão: “o que há por detrás do silêncio teológico?” Para ele, o
silêncio também fala muito e precisamos considerar esta missão. Cabe-nos
indagar como a teologia pode permanecer indiferente diante desta forte realidade
humana. “A ausência de uma pastoral firme frente à cidade, pode ser reflexo de
ausência de pensamento… Podemos legitimamente nos perguntar se a anarquia atual
da pastoral das grandes cidades não está unida a uma ausência da teologia da
cidade, que se encontra implícita nas fontes da revelação e, entretanto, não
teve a explicação necessária. A igreja da Europa Ocidental é rural em todas as
suas estruturas fundamentais”... As paróquias urbanas não passam de paróquias
rurais trasladadas à cidade[5]
Por muito tempo, a missão urbana, ou a
discussão em torno da “verba” foi desconsiderada e esquecida nas grades
curriculares dos seminários teológicos, mais recentemente, porém, por causa do
enorme desafio, tem se tornado uma reflexão cada vez mais aprofundada.
Linthicum, escritor Reformado, afirma que a
cidade é um campo de batalha por isto a chama de cidade de Deus e cidade de
satanás[6].
A Dor e
a Glória da Cidade em Apocalipse 17,18
Apesar da narrativa negativa deste texto
escatológico, podemos implicitamente encontrar na descrição da grande
Babilônia, elementos profundamente relevantes para a pastoral urbana, porque
apesar de ser tão criticada, esta cidade exerce este poder de atração e fascínio
sobre a humanidade, e de uma forma muito particular no pensamento bíblico, já
que ela é citada, considerada de forma tão presente no Antigo e Novo
Testamento. Babilônia é paradigma de uma cidade repleta de glória, mas marcada
por tensões e angústias. Que exerce um grande poder sobre a humanidade, mas que
por causa de sua ética tão cruel, é julgada de forma tão veemente neste e em
outros textos bíblicos.
Cidades atraem repulsa, condenação e crítica.
Por sua dinâmica tende a gerar anonimato,
despersonalização, isolamento, desemprego, prostituição, violência e
espiritualidade doentia, mas as pessoas continuam se voltando para ele e o povo
de Deus encontra-se também presente, participando de sua construção e sofrendo
os efeitos de sua desconstrução.
O que podemos encontrar na cidade?
1. O poder se concentra na cidade – o texto de
apocalipse 17 descreve que, na grande meretriz, os reis da terra se
prostituiam, e se embebedavam com o vinho de sua devassidão. (cap. 17.2)
A cidade atrai porque ela é o centro de
convergência do poder. Em torno dos reis e das figuras políticas se constrói o
poder. As pessoas, desde os tempos antigos, se aproximam da cidade, atraídas
pelo poder que ela possui. A grande meretriz de apocalipse 17 é o ponto de
encontro dos grandes da terra.
Ainda hoje temos a nossa realidade. O poder do
Planalto Central concentra decisões, seduz e fascina as pessoas, e porque o
poder se concentra nesta cidade as pessoas facilmente são embriagadas por esta
sedução explicita. Não é sem razão que Brasília é hoje a cidade com a maior
renda per capita do país. Poder atrai riqueza e bens de consumo.
Poder atrai ainda outros recursos e benefícios,
concentra riquezas e luxo, por isto a nobreza e toda forma de glamour se voltam para ele, ainda que, na
sua maioria, seja oposta a Deus e se opor ao propósito de Deus. Poder exerce
grande atração ao coração humano.
Apesar desta realidade tão explícita de
oposição ao Sagrado, cidades ainda continuam sendo atraentes, por isto as
pessoas tendem a se concentram especialmente em torno das grandes cidades.
Janice Perlman, conhecida urbanista americana,
contrariando o conceito de que a cidade é um péssimo lugar para se viver,
escreveu interessante livro chamado O mito da marginalidade, no qual afirma
que as pessoas vão para as cidades "porque esperam um futuro melhor.
Quando uma pessoa descobre que existe um mundo novo e fascinante fora do seu
povoado, quer experimentá-lo". [7]
Mais adiante faz dá ainda uma informação mais curiosa ao afirmar: "As
metrópoles reúnem as pessoas mais criativas e brilhantes de todos os setores, a
vanguarda e a liderança de seus países. Isto torna as megacidades fascinantes.
Com uma enorme mistura de classes, culturas e etnias. Elas são o ambiente
propicio à criatividade"[8].
Afirma noutro artigo, que os homens não são atraídos à cidade porque elas são
ruins, pelo contrário, por causa das oportunidades que ela dá. Por isto
diz que “as cidades são ótimas”.[9]
2. Cidades são marcadas pela luxúria e devassidão - A descrição de
apocalipse aponta nesta direção (Ap 17.2). A cidade viabiliza e promove a
luxúria. Grandes centros urbanos são marcados pelos pontos de prostituição e
pelas casas que promovem a decadência moral.
O anonimato favorece a promiscuidade. A
estrutura da cidade é construída de forma que as pessoas se distanciem não
apenas geográfica, mas também emocionalmente. Os grandes banquetes de luxúria,
os clubes de orgias que proporcionam tal devassidão se amontoam nas grandes
cidades.
Embora o termo “prostituição” no texto tenha
uma conotação mais voltada para a infidelidade espiritual, não se pode
desconsiderar que um dos grandes desafios da igreja na cidade está voltado para
a questão da baixa qualidade moral de seus habitantes.
Quando se pensa em ministério urbano, a
questão da exploração sexual e da venda do corpo torna-se um dos grandes desafios
de uma igreja que quer ser espiritualmente relevante para a sociedade. A igreja
dos grandes centros, muitas vezes, tem que conviver com pontos de prostituição
que disputam seus espaços lado a lado. O profano e o sagrado se revezam numa
dinâmica explicita entre o bem e o mal.
Recentemente preguei numa igreja que ficava
numa praça de uma grande cidade, e logo após o culto, aquele lugar muda
completamente seu cenário. A Igreja fecha suas portas e em seguida a praça se torna
um ponto de travestis. Igreja e prostituição convivendo lado a lado, num acordo
um tanto quanto silencioso entre as diferentes forças espirituais.
Toda igreja de grandes cidades se vêem diante
dos enormes desafios em relação à prostituição, venda de corpos e baixo nível
de qualidade moral da comunidade com a qual está convivendo. Cortiços e favelas
tornam-se lugares onde a devassidão sexual encontra um enorme espaço para
proliferação, já que espaços minúsculos, e ambientes pouco privativos estimulam
a devassidão.
3.
Por causa da concentração
do poder a cidade e os palácios são o ponto de convergência das decisões que
afetam radicalmente a vida dos seus cidadãos.
Tratando-se de uma democracia, os projetos de
lei que são votados, na sua maioria, são resultados de fortes lobbies e servem
de interesse a grandes grupos empresariais, trazendo ainda maiores sacrifícios
para as classes pobres. A classe burguesa dominante vota leis inescrupulosas
para proteger cartéis e exercitam com crueldade seu poder, votando leis
injustas e iníquas que afetam de forma direta classes menos favorecidas. A
cidade torna-se o ponto onde os podres poderes são exercidos de forma
autoritária e dominante.
Quando os regimes são ditatoriais, a cidade
torna-se o ponto onde a vida vale muito pouco. Deus condena Nínive por ser uma
cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo e que não solta o sua presa
(Naum 3.1). Por ser a capital do império assírio, Nínive concentrava toda
decisão sobre o futuro de suas províncias, gerando uma massa de cadáveres sem
fim, onde as pessoas tropeçavam sobre os mortos (Nm 3.3).
Babilônia e as grandes cidades concentram
diferentes formas de poder facilmente se tornam violentas porque os poderosos
exercem sua inescrupulosa função de matar e destruir. Poucas forças são tão
fortes na vida quanto o poder, que é facilmente corrompido. Poderes absolutos
ou divinizados são duplamente malignos.
Babilônia atraia os poderes. Ela possui sete
cabeças e dez chifres, símbolos de poder (Ap. 17.3), já que o texto afirma que “os
dez chifres que viste são dez reis” (Ap. 17.12). Símbolo de poder e força.
“Os poderes políticos e terrenos estão
profundamente mesclados com a filosofia da besta e do anticristo – (Ap 17.13,17)
Por seguirem a besta e concentrarem todas as suas energias na promoção deste
poder maligno, oferecem-lhe o poder e a autoridade (17:13) e doam-lhe o reino
que possuem (Ap 17.17), são por sua natureza intrínseca, comprometidas com a
besta e opostas ao Cordeiro. Por isto “pelejarão
contra o Cordeiro” (Ap 17.14). Os Poderes políticos não são descritos em
apocalipse como poderes “neutros”, mas estruturas sistêmicas que promovem a
besta. Babilônia está muito associada com a besta, na realidade o texto descreve
a cidade como que ‘montada numa besta” (Ap 17.3). Isto é, sua estrutura está fundada
na filosofia e no projeto da besta. Roma, com seus poderes constituídos, com os
dez chifres, representa o movimento perseguidor da igreja de Cristo durante a
história, personificada em sucessivos impérios mundiais”[10].
4. Cidades concentram riqueza e luxo – A descrição que
apocalipse faz da Babilônia, é de uma mulher “vestida de púrpura e de escarlate”, símbolos da abundância,
prosperidade e riqueza (Ap. 17.4). O poder corrompe mais facilmente que o
dinheiro, porque geralmente ele atrai riqueza. Mas esta riqueza por sua vez,
torna-se objeto de juízo e condenação como no caso de Laodicéia, que se julgava
rica, mas era pobre (Ap. 3.17).
O texto descreve a riqueza de Babilônia: “Mercadoria de prata, de pedras preciosas, de
pérolas, de linho finíssimo, de púrpura, de seda, de escarlate; e de toda
espécie de madeira odorífera, todo o gênero de objeto de Martim, toda qualidade
de móvel de madeira preciosíssima, de bronze, de ferro e de mármore” (Ap.
18.12), no instante, estas mercadorias valiosas estão sob o julgamento de Deus.
“ai, ai da grande cidade, que estava vestida de linho finíssimo, de púrpura, e
de escarlate (...) porque, em uma só hora, ficou devastada tamanha riqueza”
(Ap. 18.16-17).
A bíblia não vê a prosperidade como algo ruim
em si mesma, mas neste caso, a riqueza de Babilônia é antagônica ao Reino de
Deus, e toda esta opulência está sob julgamento e será devastada de forma
abrupta.
Por outro lado, antagonicamente, a cidade
ostenta pobreza, miséria e alienação. Um dos grandes desafios que temos pela
frente é lidar com o fato de que os pobres tem se tornado cada vez mais pobre.
O capitalismo tende a concentrar riqueza nas mãos de alguns, e a cidade
torna-se o lugar onde os bolsões de pobreza se acumulam. Muito da violência da
cidade é reativa: Violência dos violentados.
Keller[11]
afirma que existem quatro tipos de alienação: Teológica, Psicológica, social e
física. A mais dramática de todas é a teológica. O homem se separou de Deus. O
homem tem medo da presença de Deus e se esconde. O homem também sofreu um
ruptura no seu mundo psicológico. Onde havia unidade e harmonia, agora existe
desintegração, tormento, angústia e culpa. O homem sente-se “nu”, e isto traz
perda da identidade pessoal, depressão, ansiedade, suicídio; O homem também
sofre um distanciamento de seus semelhantes. Aqui surge o problema social, a
exploração, imoralidade, injustiça, ambição, racismo, imperialismo, crime,
opressão. Em quarto lugar o homem aliena-se da própria criação. A natureza é
explorada e oprimida pela ganância humana.
Tudo isto desafia o ministério de misericórdia
da igreja na cidade. A restauração da raça humana se dá em Cristo, posto que no
seu ministério de reconciliação restaurou todas as coisas em si mesmo, trazendo
novamente a ordem natural das coisas. A Igreja é chamada por Deus para exercer
sua diakonia na cidade, trazendo cura
por meio de Cristo, proclamando a redenção de todas as áreas da vida.
5. Cidades resistem à Deus – A cidade de Babilônia é paradigmática
também, no sentido em que ela é oposta aos servos de Deus – Ela está “embriagada com o sangue dos santos e com o
sangue das testemunhas de Deus” (Ap. 17.6. O povo de Deus enfrenta forte
oposição na cidade, por exercer esta contracultura e condenar a arrogância e se
opor a Deus.
Determinadas estruturas urbanas são
frontalmente antagônicas ao testemunho do evangelho, é como se colocasse uma
placa advertindo: “É proibido a entrada do povo de Deus”. Pérgamo é descrita
desta forma. “Conheço o lugar em que
habitas, onde está o trono de satanás” (Ap. 2.13). Aquela cidade se tornou
uma referência explicita para o mal, e quando o povo de Deus de forma ousada
resolve desrespeitar este “código espiritual”, ultrapassando as placas e
sinais, o resultado é o martírio.
Antipas, a fiel testemunha de Jesus, foi morto
nesta cidade que estava dominada por Satanás.
Antipas representa todos os que fielmente testemunham do evangelho. Ele
é Anti (contrário) + Pas (todos). Antipas é o protótipo do povo fiel, e todos
os que querem viver piedosamente em Cristo, sofrerão perseguição.
A cidade tem esta tendência de rejeitar o
testemunho da verdade. Jesus expulsa o demônio do Gadareno, mas os gadarenos
também o expulsam de lá (Mc. 5-17). Bastou mexer no chiqueiro daquele povo para
rapidamente se tornar persona non grata,
apesar dos benefícios que sua presença trazia a pessoas que viviam escravizadas
pela ação do demônio.
Os discípulos também foram rechaçados em
Éfeso, porque seu discurso ameaça o comércio inescrupuloso que foi criado em
torno da falsa religião. “Não somente há
o perigo de a nossa profissão cair em descrédito, como também o de o próprio
templo da grande deusa Diana, ser estimada em nada” (At 19.27). O discurso
apostólico põe em cheque as convicções da religião tradicional, e ameaça a
exploração financeira que girava em torno de romarias e lugares considerados
sagrados.
Em Filipos, o evangelho é também imediatamente
rejeitado tão logo a estrutura financeira do local tenha sido ameaçada. “Vendo os seus senhores que se lhe deslizava
a esperança do lucro, agarrando em Paulo e Silas, os arrastavam para a praça, à
presença das autoridades” (At 16.19).
Tanto em Éfeso quanto em Fillipos, os apóstolos
são objeto de controvérsia. O evangelho incomoda as estruturas da cidade e por
isto se torna inconveniente. “Estes que
tem transtornado o mundo chegaram também aqui” (At 17.6).
Babilônia possui uma estrutura preparada para
servir à besta. Os poderes temporais “tem
um só pensamento e oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem” (Ap
17.13), por isto “pelejarão contra o
cordeiro” (Ap 17.14). Deus sofre de um grande problema habitacional já que
as estruturas de cidade não são abertas para acolher a palavra da verdade.
A relação da besta com os poderes encontram-se
amalgamados. Em Ap 17.16 vemos que os dez chifres, pactuados com a besta. Ellul
chama a atenção para o fato de que Babilônia vem da palavra babilani: (a porta dos deuses), isto é,
o lugar onde os “deuses que não são deuses”, os fictícios, os opostos, os
sedutores, penetram no mundo humano e procuram perverter o homem, desviá-lo do
Deus verdadeiro.[12]
6. Cidades abrigam estruturas malignas que se tornam
habitações sistêmicas do mal. Babilônia é tratada como “mestre de
feitiçaria”, lugar que por sua índole transforma-se em “morada de demônios,
covil de toda espécie de espírito imundo” (Ap. 18.2).
Por esta razão ela se “embriaga
com o sangue das testemunhas de Jesus” (Ap 17.6), e se banqueteia com suas
feitiçarias “todas as nações da terra
foram seduzidas pela sua feitiçaria”. (Ap 18.23). Era uma cidade mesclada
com bruxarias e envolvimentos demoníacos. Não era uma cidade secularizada,
antes com uma forte presença de elementos espirituais. Só que esta
espiritualidade era esotérica, mágica, satânica, ao mesmo tempo que se opunha
fortemente à verdade do evangelho e eliminava à força, todos os genuínos
profetas e santos que proclamavam a verdade. (Ap 18.24)
Apocalipse descreve esta cidade, dominada por
forças profundamente antagônicas a Deus. Potestades e principados exercem seu
domínio sobre elas ai Satanás assume o controle de forma concreta. Babilônia é
um local, que por sua identificação com demônios faz comércio de “almas
humanas”, esta frase no grego “some Kai
psyché antropos” refere-se à servidão física e mortal a que os demônios
submetem seus habitantes. A cidade é descrita como que dominada por poderes
espirituais e malignos. Não se trata apenas da presença do mal, mas domínio
espiritual em que tal cidade se encontra.
“Tem
estes um só pensamento, e oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem”
(Ap 17.13) Poderes temporais que recebem poderes do demônio, já que “recebem autoridade como reis” (Ap
13.12). Aqui temos uma reciprocidade do mal. Os poderes terrenos recebem
autoridade maligna, e uma vez recebido tal poder, desejam promover as entidades
espirituais que as sustentam.
Para lidar com estas estruturas do mal, a
igreja precisa se capacitar espiritualmente, e precisa fazer leituras
contextuais do problema especifico de cada cidade. O conceito de
contextualização é frequentemente mal entendido e desemboca em armadilhas e
perigos. Hesselgrave descreve contextualização como “a tentativa de comunicar a
mensagem e vontade de Deus de uma forma fiel à revelação[13]”,
isto é, integrar a mensagem do Evangelho com sua cultura local. Por isto a
contextualização pressupõe que sua fonte é a revelação das Escrituras Sagradas
aplicada no contexto da pessoa que ouve a mensagem do Evangelho.
Implicações
práticas para o ministério urbano:
1. Precisamos entender as estruturas sistêmicas do mal, se
quisermos ser mais efetivos no nosso testemunho.
O desconhecimento
destas forças espirituais e sua relação com os poderes temporais, nos leva, a
trabalhar numa dimensão meramente horizontal. Sem precisamos satanizar e
espiritualizar todos os processos históricos nos quais o homem tem plena
responsabilidade, precisamos aprender a olhar com a ótica da teologia bíblica
que percebe a história humana permeada por forças espirituais. Não podemos negar
que a cosmovisão bíblica é permeada por intervenções sobrenaturais.
A consciência de que lidamos como realidades
espirituais afeta profundamente nossa abordagem pastoral. Precisamos agir não
apenas com elementos sociológicos de contextualização, inserção social e presença
humanizadora, mas acima de tudo com nossas orações.
“0 verdadeiro ministério na
cidade implica mais que pregar o Evangelho...”[14]
Não há dimensão na cidade que a redenção de Cristo não atinja. Ela é capaz,
como sal e luz, de penetrar cada segmento social e invadir todos os espaços
segmentados de uma sociedade rica ou simples. Paulo afirma que o propósito de
Deus para seu povo é que, "Pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus
se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais".
(Ef 3.10).
Russel Shedd, comentando este
versículo diz que através do ministério da igreja "não somente o mundo, mas as forças que estão acima do mundo, que são os
principados e potestades nos lugares celestiais, possam, desvendados no
ministério de Paulo, perceber as igrejas que estão surgindo. Novos convertidos
sendo libertados daquela escravatura, da morte e da ira de Deus que está sobre
todo mundo, aparecendo em toda parte como luzes nas trevas, tornam a nova criação
de Deus uma realidade"[15]
2. Isto nos torna mais resilientes diante de oposição – Resiliência refere-se
à qualidade de metais que expostos a grandes pressões, são capazes de se dobrar
sem quebrar.
Paulo e Silas enfrentam fortes oposições em
Filipos, mas perseguição não os leva a ficarem amargurados com a vida ou com o
sistema, mas os leva a glorificar a Deus por reconhecerem que o evangelho
estava alcançando vidas como a de Lídia e da jovem adivinhadora que estava
dominada por uma força maligna.
Missionários, pastores e membros de igrejas
deveriam perceber assim sua cidade. Dominada por competitivas estruturas de
poder, mas se verem de fato como embaixadores de Cristo naquele lugar.
3. Precisamos olhar a cidade com compaixão. Por causa da
dominação das trevas, tais cidades estão debaixo do juízo de Deus e serão
condenadas por recusarem a presença de Deus.
Jesus chora sobre Jerusalém, ansiando que tal
cidade deixasse sua rebeldia e recusa ao chamado de Deus para a sua história.
Ele sabia que aquela atitude pagã desembocaria no juízo de Deus sobre ele, e
por isto sua casa ficaria deserta (Lc. 13.34-35)
Jesus também increpa as cidades de Corazim,
Betsaida e Cafarnaum pela recusa em se arrepender. Ele sabe que o fechamento
daquelas cidades para o seu ministério se tornariam condenação no dia do juízo
(Mt 11.22-24).
Olhar estas cidades e compará-las com nossas
cidades no dia de hoje deveria gerar compaixão em nossos corações. Toda compaixão
geração nos impulsiona ao compromisso da oração. “A igreja é chamada a assumir
a sociedade urbana não por oportunismo religioso, mas por vocação (…) Seu papel
consiste em criar o povo de Deus a partir do povo da cidade”. [16]
Ray Bakke afirma que o nosso problema é que temos vivido na cidade com
sociologia e ferramentas urbanas, mas com uma teologia rural. Precisamos de uma
teologia tão grande quanto a própria cidade. Tão urbana quanto nossa sociologia
e missiologia.
4. Precisamos discernir a temporalidade do poder – Cidades serão
julgadas. Nações serão julgadas. Ao falar do grande julgamento no dia do juízo,
Jesus chama a atenção não sobre o julgamento de pessoas, mas de nações, ou
estruturas políticas da história. “Quando
vier o Filhos do Homem sua majestade e todos os anjos com ele, então, se
assentará no trono de sua glória; e todas as nações serão reunidas na sua
presença” (Mt. 25.31-32).
O juízo de Deus recai sobre a atitude das
nações com os famintos, estrangeiros, o nu e os presos. Os poderes são
transitórios e vão passar, mas o julgamento de Deus vai se dar. Ele virá julgar
a terra, julgará o mundo com justiça e os povos consoantes a sua equidade. A besta
é transitória “A besta era, e não é” -
Esta é uma expressão que aparece 3 vezes neste texto. 17.8 (2 x); 17.11.
A grande, imbatível e segura Babilônia é transitória e passageira. “Não é
mais”. Seus alicerces e seus fundamento ruiram. “era e não é”. Isto contrasta com a figura do Cordeiro, que “é,
era e que há de vir”. (1.4) e que foi morto “desde a fundação da mundo”
(13:8). O domínio da besta é transitório, circunstancial, é uma potência
econômica e militar, mas seu brilho vai passar. Sua glória é temporal. A
prostituta e seus seguidores empregam toda sua energia e se consomem por algo
que é passageiro e ilusório.
5. Precisamos ter olhos para perceber que a vitória final é
do Cordeiro
– (Ap 18.14)
Babilônia precisa ser julgada, mas dentro da
Babilônia está um remanescente fiel, um povo eleito, a fé destas pessoas eleitas
precisa ser despertada (Tt 1.1), com o testemunho de vida do povo de Deus, com a
palavra e, se necessário, com o martírio.
A despeito de toda oposição e perseguição, os
“eleitos e fiéis, que se acham com o
cordeiro também vencerão” (Ap 18.14). A cidade pode estar com suas
estruturas comprometidas com o mal. Mas existem muitos que vivem nesta cidade e
serão salvos.
A besta “era e não é” (Ap 17.8,11), idéia que
se repete no tempo reflete a transitoriedade do domínio dos poderes do mal. A
vitória é do Cordeiro, porque é o Senhor dos Senhores e Rei dos reis, os
poderes transitórios passam, mas aquele povo redimido nesta cidade ímpia será
participante da vitória do Cordeiro. Babilônia “nunca jamais, será achada” (18.21), por causa de sua feitiçaria e
porque nela se achou sangue de profetas, de ? e de todos que foram mortos sobre
a terra, (18.23-24) mas o testemunho do evangelho traz alegria àqueles que são
convidados para às bodas do cordeiro. (Ap. 19-7,9)
Conclusão:
A Bíblia relata que a primeira cidade a ser
construída, nasce sob suspeita, já que foi edificada por Caim (Gn. 4.17).
Muitas cidades rejeitaram os profetas, expulsaram Jesus de seu território e
recusaram a presença dos apóstolos. Isto tudo pode gerar em nós uma resistência
ao ministério urbano e ao chamado de Deus para sermos luz onde satanás ainda
constitui seu trono.
É bom considerar novamente que se a bíblia nasce
num jardim seu último cenário é de uma cidade. Podemos até estender que nossa vocação
é continuar no jardim, mas a história bíblica nos faz direcionar o olhar para a
visão de uma cidade.
Naturalmente a cidade final é glorificada “vi também a cidade santa, a nova Jerusalém
que descia do céu” (Ap. 21.2). Nesta caminhada não estamos mais no jardim,
nem chegamos à nova Jerusalém, por enquanto estamos inseridos na cidade de
luxúria, promiscuidade, poder e oposição a Deus. Babilônia já caiu, mas ainda
não deixou de existir. Como povo de Deus, vivemos nesta história aguardando a
manifestação de uma nova ordem social e política. Enquanto isto, somos
convidados a continuar dando testemunho da verdade, derramando o sangue do
testemunho, se necessário, mas entendendo de antemão, que a história não segue
um curso cego, antes nos antecipa a vitória do Cordeiro.
Keller afirma: “Quando olhamos a Nova
Jerusalém, descobrimos algo estranho. No meio da cidade está o rio de águas
cristalinas, onde se encontra a árvore da vida, produzindo frutos e cujas
folhas curam as nações e suas feridas resultantes da quebra do pacto divino.
Esta cidade é o Jardim do Éden, refeito. Ela é o fundamento do propósito do
Éden de Deus. A Bíblia começa num jardim e termina numa cidade; o propósito de
Deus para a humanidade é urbano! Por que? Porque a cidade é invenção e projeto
de Deus, não apenas um fenômeno sociológico e uma invenção da humanidade”[17].
A besta “era
e não é”, (Ap 17.9,11), mas o Cordeiro de Deus “o alfa e ômega... Aquele que é, que era e que há de vir, o Todo
Poderoso” (Ap. 1.8) subsiste. A vitória é do Cordeiro, e de todos quantos
caminham ao seu lado.
Rev Samuel Vieira
Anápolis 07 Out 2010
[1] . Ellul, Jacques – The meaning of the city, Vancouver Canada ,
William B. Eerdmans Publishing co., 1993, pg 5
[2] Linthicum- Robert – Cidade de Deus e cidade
de Satanás, Belo Horizonte, Missão Editora, 1995, pg. 26
[3] Cox, Harvey
– The secular city - Toronto , Ontário, The
MacMillian Company, 1965, pg 47
[4]
Comblin,
José – Teologia da Cidade. São Paulo,
ed. Paulinas, 1991, pg. 31
[5] Comblin, Jose –1991, pg. 14
[7]
Janice Perlman, “As cidades são ótimas”. Artigo,
revista veja, 27 julho 1994
[8]
Idem, pg 7
[9] Idem, pg 8
[10]
Samuel Vieira , Tudo Sob Controle, Goiânia, Ed. Logos, 2002, pg 166
[11] Keller, Tim J., - Ministries of
Mercy, Philisburg, PA, P& R Publishing, 1997, 2a. edição.
[12] . Ellul, op cit. 215
[13] . David J. Hesselgrave and Edward
Rommen, Contextualization: Meanings,
Methods, and Models, Grand Rapids, Baker Book House, 1989, pg. 200.
[14]
Linthicum, op cit. Pg. 29
[15]
Shedd, Russel – tão grande salvação, Abu Editora, S. Paulo, 1978, pg. 48
[16] Idem. pg. 234
[17] Keller, Tim – A Biblical theology
of the city – http://www.e-n.org.uk/p-1869-A-biblical-theology-of-the-city.htm 28/8/2007
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