quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O processo da mudança cultural e a ética da mudança cultural

 


 

 

 

Introdução

 

Todas as culturas sofrem mudanças de paradigmas. Algumas são milenares e as tradições se perpetuam de uma geração para outra sem grandes transformações, mas outras são muito expostas a mudanças, principalmente se estão se relacionando e recebendo influências e informações de outros povos vizinhos. Muitas regiões que tem acesso a portos e a comércios exteriores sofrem mudanças de forma mais rápida, porque precisam dialogar e negociar com navios mercantes. Esta troca de mercadoria facilita também a troca de informações e a influência externa se torna mais presente. Povos do interior ou aldeias isoladas demoram mais para assimilar mudanças.

 

Outro aspecto que gera mudanças culturais numa sociedade são as invasões e guerras. Quando isto acontece, uma cultura interfere diretamente na outra. Isto se deu com a invasão dos espanhóis na América Latina, dos portugueses no Brasil e com os babilônios em Israel. No último caso, destruíram Jerusalém, destituíram as autoridades, levaram cativos crianças e adolescentes alterando a cultura e a dinâmica de vida dos judeus. Cativos e sem raízes, exilados e sem identidade, foram facilmente engolidos por sistemas até mesmo pagãos. Os exemplos de rapazes com Daniel, Hananias, Mizael e Azarias que conseguiram resistir a cultura pagã da Babilônia são elogiados, mas a realidades é que milhares deles simplesmente assimilaram a cultura invasora e se adaptaram culturalmente, até para sua própria sobrevivência.

 

Ao comunicar o Evangelho, precisamos entender as mudanças que a sociedade está sofrendo na sua cosmovisão e como tais mudanças mudam comportamentos. Não podemos imaginar uma mudança cultural que não tenha impacto na forma como as pessoas se vestirão e até mesmo nos hábitos alimentares. A influência do fast-food americano está se popularizando cada vez mais no Brasil. Um simples exemplo de mudança de hábitos.

 

Com o advento da Mídia, primeiramente pelos jornais e rádio, depois a massiva influência da televisão, cinema e música, hábitos e vestimentas foram se adaptando conforme as novelas e programas iam influenciando o pensamento. A arte sempre teve poder muito forte de transformar a cultura e levar as pessoas a aceitar novos paradigmas morais e a se encaixar nesta nova forma de ser e viver.

 

Recentemente temos sido mais impactos pela mídia social: Influenciadores, youtubers, vão formando seus seguidores e o que eles fazem e dizem tem o poder de formar opiniões e estabelecer valores, principalmente no público mais jovem, ainda em formação e mais aberto e desejosos de mudanças. Os efeitos das mudanças de hoje serão percebidos e sentidos de forma mais intensa daqui a alguns anos. Nós ainda não sabemos o que, de fato, tem sido ensinado e está influenciando nossos filhos. Na era da Televisão era possível conhecer o pensamento de cada programa, mas a dinâmica das mídias sociais é mais fluída, e cada pessoa dentro de uma casa, pode estar recebendo diferentes influências com diferentes pontos de vista.

 

Como podemos ser relevantes na comunicação do Evangelho num contexto de tão grandes e sensíveis mudanças, que muitas vezes ainda nem entendemos corretamente? Como a igreja pode se preparar para esta avalanche de informações, na sua maioria antibíblica, anticristã, anti-evangélica e antiDeus?

 

O Exílio do Sagrado

 

Não raramente percebemos que Deus sofre um problema habitacional crônico. Ele perdeu seu lugar. É como se fosse um intruso na festa, uma espécie de japonês da Polícia Federal.

 

Sistematicamente a filosofia procura fazer isto. O grande problema da visão de Darwin, não é a discussão em torno do evolucionismo. O problema é metafísico. Tem a ver com sua visão de “Geração espontânea”, que excluiu a possibilidade de qualquer Ser ou de um design inteligente por detrás da criação. Não há paternidade nem Criador, apenas a criatura.

 

Da mesma forma, o maior problema do Marxismo, para os cristãos, não é a luta de classe e na formulação utópica da economia e da sociedade, apesar destes pontos, em si mesmos, já serem desafiadores. O maior problema, entretanto, é o “Materialismo dialético”, cuja hermenêutica da história é incapaz de enxergar qualquer possibilidade do Sagrado. Não é sem razão que com o advento do Livro Vermelho de Mao-Tsé-Tung, na China, o problema se tornou ideológico, mas não parou no campo das ideias e do pensamento. Era necessário perseguir, destruir e matar a ideia de Deus. Então, fazia todo sentido, expulsar missionários, executar pastores e padres, transformar os templos em escolas ou latrinas. Era necessário matar Deus! O mesmo movimento, talvez com uma intensidade ainda maior, se tornou evidente na perseguição e martírio sistemático de toda religião na Rússia Comunista.

 

Não apenas o menino Jesus da manjedoura teve problemas para encontrar hospedaria, Deus foi excluído do saber. Veja o mundo das artes. Não é muito difícil filmes e séries construindo uma cosmovisão de monstros e demônios, mas é difícil encontrar Deus. Ele foi excluído das discussões, embora Satanás e suas hostes sejam bem presentes. Fala-se do Mal, mas é necessário minimizar, excluir ou rejeitar Deus.

 

O pensamento existencialista, que tanto atrai a geração contemporânea, cujo conceito de vida tem sido adotado por toda esta geração se fundamenta na cosmovisão de que a existência precede a essência, mesmo porque a Essência é inexistente, tudo é fluído, passageiro, névoa, vazio. O que é sólido se desmancha no ar. Não há consistência, nem realidade, apenas percepções e sensações. Então, “comamos e bebamos que amanhã morreremos.” Tudo é nada! Nada é tudo! O suicídio se torna uma interessante alternativa filosófica.

 

Durante a Idade Média, o mundo invisível encontrava-se mais próximo dos homens, o drama da salvação, o perigo do inferno, os símbolos sagrados se transformaram em mecanismos que o homem construiu para exorcizar o medo. Na sociedade moderna, contudo, a religião transforma-se no passado retrógado, na tradição obsoleta. O discurso religioso é declarado sem sentido, e a ciência deificada se apresenta vitoriosa. Não há lugar para a religião, Deus fica confinado aos céus, se é que eles existem.

 

O problema mais sério, entretanto, é apontado por Chesterton: “Quando o povo deixa de acreditar em Deus, ele deixa de acreditar em tudo.” Surge o desespero, o vazio, a falta de sentido, a ausência da imaginação e do simbólico. O exilio do Sagrado, expulsa o homem da seu Sentido maior. Perde-se a razão de ser e existir. A vida perde referência. O exilio de Deus transforma-se no exilio da nossa alma.

 

A sociedade moderna tem mudado de forma radical sua relação com a divindade.

 

No meu Livro, “Tudo sob controle”, publicado pela Editora Logos e já na sua segunda edição, escrevi o seguinte:

 

É interessante observar que neste século, os 4 maiores sistemas filosóficos de maior popularidade e aceitação são opostos, na sua essência, aos valores cristãos:

 

Marxismo – (Ciências sociais) Sistema elaborada sobre a teoria da luta de classes, que vê a religião como elemento de alienação social, que impediria o crescimento das pessoas, sendo um empecilho a crítica às forças históricas que interagem no âmbito social. O marxismo está fundamentado na teoria do materialismo dialético elaborado por Hegel. Nele não se vê nenhum ato de Deus, as forças são meramente humanas. Marx chegou a afirmar que a religião é o ópio do povo. Os líderes religiosos usariam estrategicamente a religião para neutralizar a capacidade de reação dos pobres. Ópio é um narcótico, que rouba o poder de crítica dos homens e os impossibilita de agirem diante da opressão social.

 

Existencialismo – (Campo Filosófico). Entre os seus precursores encontramos Nietzsche, Camus e Sartre. Afirma que a vida deve ser vivida aqui e agora, que a história não tem sentido, que vivemos no meio do caos, não existe nenhum significado por detrás da tola e fútil vida humana, que somos apenas uma folha solta ao vento. Não sabemos de onde viemos, porque vivemos e nem para onde vamos. No meio desta insustentável leveza do ser, só resta ao homem, viver cada dia da forma mais intensamente apaixonada possível. O que importa é o agora. Não existe Deus, não existe juízo, não existe certo e errado, tudo é relativo. Talvez a melhor frase para sintetizar seu pensamento filosófico tenha sido expresso por Sartre: “O mundo é um caos, absurdo. Deus dá ordem ao absurdo, mas Deus não existe”.

 

Freudianismo - (Campo Psicológico) A psicanálise foi elaborada por Freud, que hipervalorizou a sexualidade como forma de encontrar o sentido para o viver humano. Freud via a repressão sexual, como o fator de maior conflitividade para o ser humano. A liberação sexual, ou a não repressão aliviaria esta carga neurótica presente no ser humano. Freud via a religião como uma neurose obsessiva compulsiva. Critica fortemente a religião no seu livro “O mal-estar da civilização” e ainda hoje exerce enorme influência no campo da psicologia. Embora não possamos negar sua valiosa contribuição, nem como a dos outros autores acima citados para o campo literário, é assustador a influência quase massiva que exerce sobre a psiquiatria e na pesquisa da psicologia humana.

Darwinianismo – (Campo Científico e biológico) Se o existencialismo exerce grande influência na filosofia, o marxismo no campo sociológico e o freudianismo no campo psicológico, o Darwinianismo vai criar uma corrente que causa furor e controvérsia no campo da ciência. Darwin via o surgimento das espécies como fruto do acaso, não de um Deus sábio e providente. Isto foi chamado de geração espontânea. As coisas surgiram como resultado da obra evolutiva e não haveria nenhuma mente inteligente ou criadora por detrás. Embora normalmente nossa grande controvérsia ocupe a questão da teoria sobre a origem das espécies, acredito que como cristão, a grande controvérsia deveria ir a uma dimensão mais profunda, isto é, no fato de Deus ter sido retirado da criação e da providência do universo. Esta teoria científica afirma que a história está entregue a uma força cega e impessoal, entregue a si mesma, sem nenhuma ação de um Deus Poderoso e pessoal, que criou os céus e a terra e sustenta todas as coisas pela palavra de seu Poder. Para eles, a ideia de Deus pode ser facilmente suprimida dos cosmos.

 

Todas estas quatro correntes filosóficas, nos desafiam a levar em conta o perigoso processo de mudança cultural com o qual estamos lidando e como isto afeta a ética de um povo. Este certamente é um grande desafio no campo das Missões Transculturais: Temos que falar a um povo cuja linguagem secularizada está bem distante da linguagem que empregamos em nossos discursos e sermões. São dois mundos paralelos, e devemos levar em conta a oposição maligna e o enfrentamento espiritual com o qual temos que lidar. Isto exige, além da piedade e da oração, uma capacitação divina para que a mensagem que pregamos faça sentido ao homem que tem se afastado de Deus e destruído os símbolos e linguagens religiosas.

 

Comunicando o Evangelho em uma cultura de mudanças

 

Paulo é um exemplo de como a cultura pode ser influenciada pelo Evangelho. Ele foi capaz de enxergar a realidade do seu tempo e comunicar o evangelho com lucidez no contexto gentílico, pregando a mensagem de Cristo e plantando novas igrejas em outras regiões possibilitando assim a expansão do cristianismo e abrindo fronteiras ao Evangelho. E, para continuar se comunicando com as diversas comunidades, mesmo preso, não se isolou, mas escreveu cartas, dando resposta aos conflitos culturais que as novas igrejas enfrentavam tanto nas questões doutrinárias quanto nas questões éticas, sendo grandemente usado para lidar com tradições e costumes, como é visível em 1 Co 11, ao tratar da questão cultural do uso véu naquela diante daquela sociedade.

 

Como comentamos em textos anteriores, para comunicar o evangelho, precisamos assimilar três culturas:

 

A da Bíblia (interpretando corretamente a Palavra de Deus)

A do mensageiro para que ela não se transforme num problema para o ouvinte)

A cultura do receptor (Sensibilidade à cultura dos ouvintes)

 

A quem Paulo pregava? Como ele conseguia traduzir a mensagem de forma relevante e contemporânea? Como viviam os judeus da diáspora, seu público inicial, e como era a cultura dos demais povos, da Ásia Menor e até mesmo da Macedônia? Paulo foi capaz de entender e enxergar a realidade das diferentes culturas a quem pregava, especialmente aos pagãos, como fez em Icônio (At 14) e Atenas (At 17), quando foi sensível ao pregar, partindo não da Lei do Antigo Testamento, como fazia com os judeus, mas da criação e da cultura específica destes povos. Ele soube enxergar o que se passava nos grandes centros, tendo cuidado essencial em atingir as metrópoles, que poderiam rapidamente influenciar as demais cidades periféricas.

 

Paulo nunca negociou a essência de sua mensagem, do Cristo ressurreto, mas soube comunicar de forma eficiente e adaptada a cada contexto para que a mensagem pudesse ser compreensível aos ouvintes. Ele sempre foi atento ao estabelecer as estratégias necessárias para que o evangelho chegasse a todos e participou ativamente da cultura das regiões por onde passou.

 

Talvez o fato de ter nascido em Tarso, mundo gentílico, fora dos domínios de Israel, e ter sua formação acadêmica e teológica aos pés de Gamaliel, aliado às suas viagens tanto para a Arábia, quanto para a Síria e Cilicia, tenha lhe trazido uma compreensão multicultural mais ampla e positiva, do que, por exemplo Pedro, que enfrentou fortes lutas contra o seu etnocentrismo. Antes de Paulo se tornar um missionário, ele passou por um processo de aculturamento e desenvolveu grande capacidade dialógica com culturas distintas, facilitando o processo da comunicação. Ele era capaz de ouvir e conviver com os diferentes em permanente espírito de acolhida e aceitação. Ele foi eficaz na pregação e soube utilizar estas vias culturais para ser eficiente na transmissão da mensagem da salvação em Cristo. Sua formação e abertura o capacitava a dar continuidade aos trabalhos missionários e plantar igrejas em outras regiões, além de ser o background necessário para transmitir a mensagem por meio dos seus escritos e cartas que eram os meios de comunicações da sua época. Foi assim que o apóstolo se manteve em contato continuado e efetivo com as cidades e lugares distantes, rompendo as barreiras geográficas.

 

No processo de mudanças culturais, surge o desafio de lidar com novos costumes, comportamentos e tradições. Isto envolve desde o uso de determinadas vestimentas que são aspectos externos, até mesmo aspectos morais contrários às Escrituras Sagradas. Como o Evangelho consegue discernir entre aquilo que é superficial com aquilo que é contrário à Palavra de Deus? Muitas vezes a igreja confunde histórico com revelado, temporal com eterno, método com objetivo e isto se torna um problema na comunicação.

 

Estamos, portanto, sendo desafiados a responder com o evangelho da graça e da salvação, a uma sociedade que insiste em viver longe de Deus, que construiu uma mudança cultural sem uma cosmovisão cristã e que tem sido tão profundamente atingida na sua ética.

 

Que grande desafio temos em pregar o evangelho com clareza, paixão, lucidez, entendimento e unção...

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário